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Primeira Parte

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Capítulo 1

 

A noite avançava silenciosa. Não fosse o coaxar estalado das rãs e o canto dos insetos, não haveria um único som. À frente do casarão velho de madeira, dois homens faziam guarda, com suas espingardas em punho. Vestiam roupas largas e pesadas para se proteger do frio. Os chapéus de abas largas ajudavam a proteger as cabeças da umidade do banhado e da neblina espessa que começava a se erguer por todos os lados. Em volta da propriedade, árvores que pareciam capazes de tocar o céu. Aos fundos, graças à escuridão da noite sem lua, era possível divisar apenas as margens do lago escuro, que acariciavam os barrancos da encosta.

—Agora é esse frio dos diabos todos os dias! —exclamou um dos homens.

—E o inverno ainda nem chegou direito. —respondeu o outro, enquanto acendia o palheiro.

O cheiro forte do fumo se espalhou pelo ar.

—Noite quieta. —disse o primeiro, ao fim de algum tempo.

—Você disse o mesmo ontem, e antes de ontem. Isto aqui é o fim do mundo! O que você queria?

—Não é disso que eu estou falando. Você sabe.

O outro suspirou, abatido, antes de responder:

—É, eu sei.

Não eram garotos, não chegavam a ser jovens, mas estavam longe da velhice. Pareciam, porém, incrivelmente cansados. E não era apenas o efeito da fadiga provocada pelas noites de vigília.

—Vá dá uma olhada no estoque! —mandou o mais alto dos dois homens, depois de dar sua última tragada e entregar o cigarro ao companheiro.

—Tudo bem. —respondeu o outro.

Vagarosamente, até porque a escuridão não permitia uma movimentação muito rápida, ele contornou a casa, cortou algumas dezenas de metros e chegou ao depósito velho de madeira à beira do lago. Havia tochas ao redor do barraco. O vigia colocou a espingarda no ombro, agarrou a madeira podre e úmida da borda da janela e ergueu o corpo para observar o interior: uma dúzia de homens e mulheres negros, da mais tenra juventude até a mais miserável velhice, vestindo seus poucos trapos rasgados, espremiam-se uns contra os outros para se protegerem do frio. Um deles, um pouco melhor vestido e separado do restante do grupo, falou sem levantar os olhos:

—Nós não fomos a lugar nenhum.

—Nunca é demais conferir. —respondeu o vigia, antes de se largar de volta ao chão. —Uma boa noite, Rafti! —disse ele.

O homem negro não respondeu. O vigia o compreendia. A situação era ainda mais difícil para ele. A tensão espreitava no ar, o medo se espalhava por todos os cantos daquela terra morta, naquela noite escura e deserta, mas para as pessoas dentro do casebre a situação era certamente muito pior, pois cada segundo representava a linha que separava a vida da morte, a sanidade do desespero. Para o homem que guiava os remos tudo era muito pior.

O vigia já retornava a seu posto quando enxergou, na margem oposta do lago, por cima dos vultos negros das muitas árvores que emergiam da água escura, a chama vermelha que ardia alto no céu.

—Não pode ser! É muito cedo! —sussurrou ele, para si mesmo. —e partiu como um raio, tropeçando nas próprias pernas, até alcançar o companheiro.

—A chama! —berrou ele.

—Não pode ser! —gritou o outro. —Precisamos acordar o patrão.

E assim o fizeram. O homem imenso e volumoso, de cabelos ralos e dentes escuros, beirando aos sessenta anos e trajando roupas um pouco melhores que as dos empregados, chegou à margem do lago dois minutos depois.

—O que estão esperando? —berrou ele, aos homens que se amontoavam à frente do barraco. —Carreguem o barco!

Os empregados, naquele momento, já formavam um pequeno bando, quase uma milícia: três dúzias de colonos, mais acostumados a enxadas que a armas de fogo, que tiveram de se adaptar aos novos tempos. O lugar era infértil ao extremo, de qualquer forma, e os primeiros donos da propriedade tiveram de abandonar, séculos antes, o sonho de que qualquer coisa crescesse naquele chão podre repleto de banhados. Só as árvores titânicas cresciam naquela terra, mas elas estavam ali há muito tempo.

—Carreguem, agora! —voltou a berrar o dono da propriedade. —Ou eu coloco vocês no barco!

 

Poucos minutos depois, tudo estava pronto. O remo arranhou a água. O jovem negro agora fazia a grande canoa de madeira escura deslizar pelo lago. Conduzia seus companheiros de prisão, acorrentados e amedrontados, à outra margem.

Quando a canoa desapareceu na escuridão, o dono da fazenda gritou novamente a seus homens:

—E alguém vá chamar o Dantas! Rápido!

 

O homem em questão chegou a cavalo, mais ou menos meia hora depois, e saltou do animal com a habilidade de um artista de circo. Era alto, ruivo e mais forte que a maioria dos outros empregados. Vestia-se melhor que o patrão, quase como um cavalheiro, mas ainda carregava a rispidez da terra, não só nas vestes mas também no rosto. Entrou na casa sem muita cerimônia e caminhou até o escritório do patrão.

—Eu soube. —afirmou ele, assim que entrou. —Está ficando cada vez pior. Nesse ritmo, todos nós vamos morrer.

—É por isso que precisamos renovar o estoque. —respondeu o dono da propriedade, de trás de sua mesa imensa, atirando ao outro uma sacola de pano do tamanho de um punho. Dentro, muitas moedas de ouro e algumas joias que pareciam muito valiosas.

—Tudo isso?

—É só o começo. Divida seus homens e traga quantos encontrar. Eu repito: todos que encontrar!

—Não sei se vamos conseguir tantos.

—É bom que você consiga. Não preciso dizer o que acontecerá conosco se você não conseguir.

 

 

Capítulo 2

 

As ondas golpeavam a madeira escura. O casco velho gemia a cada impacto, mas rasgava a água gelada com valentia. O vento soprava com força, apesar do céu azul límpido de inverno. Tudo se movia, no conhecido zigue-zague do oceano. Velas esfarrapadas de noventa pés de altura se agitavam entre o céu e o mar.

O navio parecia um monstro marinho repleto de feridas e caroços. Os muitos anos, porém, só serviram para deixá-lo mais forte, como um soldado que se torna general não porque é amigo do rei mas porque realmente conhece a batalha. Assim era aquele barco, atravessara eras, desbravara mares desconhecidos. Além de tudo, era grande, maior do que a maioria dos navios que navegavam por aquele mar tropical, e era rápido, apesar do formato irregular do casco, que se tornava mais torto à medida que os anos avançavam. No fim, no aspecto geral, era quase como olhar para uma tartaruga de ponta-cabeça, mas uma tartaruga extremamente valente, capaz de cruzar a pique qualquer oceano virgem.

No convés inferior, escuro e abafado, dezenas e mais dezenas de homens e mulheres formavam um amontoado negro cansado e castigado. O lugar cheirava a vômito e urina: um cheiro que traria de volta o almoço dos menos avisados. Não bastasse isso, havia a companhia dos ratos, seres imundos tão silenciosos quanto a peste que carregavam em suas pulgas. Quase todos ali estavam fadados à morte, de uma forma ou de outra.

No andar de cima, as velas se agitavam. Tinham pressa. Três ou quatro homens faziam todo o trabalho, todos marinhos fortes e dourados pelo sol. Um deles, que subira minutos antes ao mastro principal para soltar uma corda, gritou aos companheiros:

—Terra!

O quinto elemento, que até então apenas acompanhara, com olhos exigentes, o trabalho dos companheiros, correu até a cabine e abriu a porta.

 

Era como abrir uma passagem para outra dimensão. Ali dentro, elegância e riqueza: tecidos caros, móveis antigos e muitos objetos brilhantes. O coração da Europa navegando por aquelas águas tão baixas. Sobre a mesa lustrada de madeira negra, uma taça de vinho tinto pela metade.

—Senhor, chegamos! —disse o marinheiro, assim que abriu a porta.

—Já era hora! —exclamou uma voz masculina fina e rouca, carregada do sotaque áspero de quem ainda não se adaptou à articulação predominantemente labial dos povos de baixo.

O homem se ergueu e deixou sua sala. Era um sujeito loiro, na casa dos quarenta, mais baixo que alto, de pele mais clara que leite. O cabelo comprido, amarrado em um rabo de cavalo, escorria-lhe pelas costas. Vestia um fraque roxo com franjas brancas feito sob medida que pareceria exagerado mesmo nas terras altas. Ali, no meio daquele mar selvagem, beirava ao excêntrico. Um par de óculos escuros redondos e pequenos lhe cobria os olhos.

—Este lugar é quente como o inferno! E chamam isso de frio! Ah, como sinto falta da minha terra, de toda aquela neve!

O homem de roxo se dirigiu a alguém ao lado.

—O que me diz, majestade? —perguntou ele, ao homem amarrado ao mastro principal. —Não está com saudades da sua terra?

O sujeito lhe devolveu um olhar que teria cortado uma pedra. Era um homem magro mas visivelmente forte, de pele marrom lustrosa, lábios grossos e cabelos raspados recentemente à lâmina. O rosto grave, de maçãs quadradas, não apresentava nenhum sinal de barba. Os braços fortes, presos em grilhões pesados de ferro, haviam sido esticados para trás mais do que parecia necessário. As pernas, a bacia e o tronco também foram presos, de forma muito rente, a madeira do poste, três camadas de correntes que segurariam um elefante. Sua boca fora atada com um freio de cavalo.

—Está confortável? —perguntou o homem albino.

Estava prestes a sair e voltar a seu camarote, mas mudou de ideia e deu meia-volta.

—A propósito, por que não mostra como é bom e escapa novamente? —perguntou ele, com o rosto muito próximo ao do outro, cujos olhos faiscavam como os de um cão raivoso. —É, eu acho que não.

O principal dos marinheiros se aproximou do dono do navio.

—Senhor... —disse ele, no tom de voz dos submissos.

—Pois não, capitão?

—É que os homens disseram algo. —prosseguiu o homem, apontando com a cabeça para o sujeito amordaçado. —Algo sobre ele.    

—E o que exatamente eles disseram?

—Disseram que ele era importante em sua terra. Disseram que ele é uma espécie de príncipe.

—É possível... —reconheceu o dono do navio, sem tirar os olhos do homem preso ao poste. —Mas o rei de um punhado de vermes continua sendo apenas um verme... Não é verdade, capitão?

—Sim, senhor... Acho que sim!

O sujeito albino, por fim, abandonou seu prisioneiro e caminhou para a proa do navio a passos elegantes. Com a mão à frente dos olhos para se proteger do sol, analisou o horizonte.

—Quanto tempo? —perguntou ele, ao capitão, que o acompanhara como um cachorrinho.

—Se continuarmos assim, duas horas até o porto, senhor.

—Ótimo. Não vejo a hora de fazer algum dinheiro e sair dessa terra nojenta.

 

Horas depois, o navio já estava no porto, com as rampas abaixadas.

—Vendemos dois, senhor! —disse o capitão, ao abrir a porta da sala luxuosa.

O sujeito albino se escondia do sol como um morcego. Aparentemente não se acostumara ao calor e à maresia, mesmo depois de tanto tempo no negócio.

—O dia todo nesta espelunca, e vendemos apenas dois? Desse jeito os escravos vão morrer antes de serem vendidos.

—Mas há um homem aqui que diz que quer tratar diretamente com o senhor. Ele diz que tem dinheiro.

—Então não vamos deixá-lo esperando.

O dono do navio caminhou até o meio do convés e se deparou com um sujeito ruivo bastante alto, com quem trocou um aperto de mãos que fez suas falanges estralarem. Havia mais dez homens robustos com ele.

—Lorde Hilgert? —perguntou o sujeito. —Franz Hilgert?

—Em carne e osso. —respondeu o dono do navio. —E você, quem é?

—Eu me chamo Jerônimo Dantas. Sou o capataz de um proprietário de terras do sul do país. Estou aqui para fazer negócio.

—Ótimo! —disse o dono do navio, antes de ajeitar uma prancha de madeira sobre dois barris. —Porque é isso que eu faço: negócios!

Ele esticou um pedaço de papel sobre a mesa improvisada e sacou uma caneta do bolso.

—Então, quantos vai querer?

—Todos. —respondeu o capataz.

—Certo! —golfou o dono do navio, depois de soltar uma risada seca. -Falando sério, quantos escravos vai querer?

—Estou falando sério. Quero todos.

O dono do navio ficou mais sério. Estava começando a pensar que estava diante de um maluco.

—Deixe eu lhe explicar direito: tenho oitenta e dois escravos neste navio.

O sujeito ruivo atirou uma bolsa de couro diante dos olhos do outro.

—Isso deve pagar. E quero seu navio também.

O sujeito albino despiu os óculos, revelando os olhos amarelados. Estava em êxtase. O efeito durou um longo tempo.

—Negócio fechado. —disse ele, por fim, depois de checar as moedas uma a uma. —Com isso aqui, pode levar até minhas ceroulas.

—Quero apenas o navio e os escravos. Você tem meia hora para sair.

—Tudo bem! O navio é seu: você manda!

Em menos de vinte minutos, as coisas estavam arranjadas. Os marinheiros retiraram apenas o essencial, o que representava quase tudo que havia no camarote.

—Tudo bem, só falta mais uma coisa. —disse o ex-proprietário.

E começou a soltar as correntes do homem preso ao mastro.

—O que está fazendo? —perguntou o novo dono do navio.

—Vou ficar com este aqui, se não se importa. É pessoal.

—Eu disse: "todos!".

—Você tem oitenta e duas pessoas lá embaixo.

—São todos... —insistiu o capataz. —ou eu espero o próximo navio.

O sujeito albino se deu por vencido.

—Tudo bem! Não é tão pessoal assim. Só faça um favor a si mesmo e mantenha este aqui bem preso.

Ele é escorregadio como sabão.

—Entendi. Agora saia!

—Eu estou indo. Um último conselho, e pode considerar parte do pacote: esses escravos são todos meio lentos, então trate-os com rigor se quiser que trabalhem direito.

—Acredite em mim: isso não fará a menor diferença! —respondeu o sujeito ruivo.

Os olhos do homem albino, debaixo de seus óculos escuros de besouro, encheram-se de curiosidade: a total falta de exigências parecia muito estranha. Algo não se encaixava. Era quase como se o sujeito ruivo estivesse comprando gado para o abate.

No fim, a ganância falou mais alto que a curiosidade, e ele deixou o navio com um sorriso de alegria nos lábios finos e esbranquiçados. Depois de dar uma moeda a cada marinheiro pelos serviços prestados, partiu mais alegre que noivo em noite de núpcias.

—O que fazemos com ele? —perguntou um dos empregados do capataz, apontando para o homem preso ao poste, que já parecia quase morto.

—Coloquem o coitado lá embaixo com os outros.

Capítulo 3

 

Os novos marinheiros zarparam duas horas mais tarde, logo depois que a maré atingiu a profundidade necessária. Navegaram pela costa, para não serem traídos pela inexperiência. Depois de alimentarem as pessoas no porão, que não comiam há dias, tentaram dormir, mas foi impossível. Pouco acostumados ao balanço, vomitaram por horas a fio. Então começaram a beber para aliviar o mal-do-mar. Resolveu, ao menos em parte, mas o vômito da maresia foi substituído pelo vômito da ressaca e, no meio da noite, os homens já estavam mais fracos que a gente no porão.

A madrugada já avançava quando eles conseguiram pegar no sono. Só três permaneceram acordados: dois na parte mais alta do convés, bem acima do camarote, e um fazendo guarda, próximo a entrada do porão, que ainda por cima estava selada por fora.

Mal o sujeito de guarda cochilou, e a porta do porão se abriu e voltou a se fechar sem que ninguém no lado de fora se desse conta. Um vulto deixara o convés inferior. O guarda despertou segundos depois e foi estrangulado por braços fortes até desmaiar. O sujeito que estivera amarrado ao poste subiu lentamente uma das escadas laterais. Os dois homens no andar de cima estavam voltados para o mar, inclinados contra o parapeito da embarcação.

Descuidados, haviam largado suas armas sobre um barril próximo: três garruchas pequenas e um mosquete de dois disparos. O homem negro sorriu no escuro. Tinha dentes surpreendentemente brancos. Ele apanhou duas das pistolas, conferiu a carga, puxou os cães, e caminhou na direção dos homens distraídos, silencioso como uma sombra.

—Não é isso. —disse um dos homens. —Você não entende?

—Me explique! —respondeu o outro. Era o capataz.

Com os braços esticados, o homem que estivera amarrado ao mastro se aproximou até os canos das armas quase tocarem as cabeças dos dois homens. Um tiro para cada um, e tudo estaria resolvido. Seus dedos indicadores pressionaram, lentamente, os gatilhos. Ele prendeu a respiração para melhorar a mira. Não que precisasse, daquela distância. Estava feito! Bastava atirar.

—Eu vi um garoto no outro grupo de escravos. —respondeu o homem agarrado a madeira do parapeito. Parecia abatido. —Um menino. E nós o estamos levando para a fazenda! Para aquele lugar!

O homem negro congelou, ainda com as pistolas em punho. Lágrimas encheram seus olhos.

—Um menino, Dantas. —repetiu o homem no parapeito. Seis, talvez sete anos... O que estamos fazendo?

—Nós estamos sobrevivendo. —respondeu o capataz.

Pensou ter enxergado uma sombra se movendo atrás de si e se virou. Não havia nada.

—Não pense nos filhos dos outros. —continuou ele. —Pense nos seus filhos. O que acontecerá com eles se nós não levarmos essas pessoas?

O outro suspirou.

—Você tem razão. É que essa situação é insustentável.

—Eu concordo com você. Mas precisamos prosseguir.

 

As horas avançaram. No dia seguinte, os homens encontraram o guarda caído diante da entrada do convés inferior. O homem assegurou que fora atacado por alguém.

—Nós estamos em um navio no meio do mar. —disse o capataz, certo de que o motivo do desmaio fora o álcool. —Quem iria atacar você?

—Ora, talvez um dos escravos. —respondeu o guarda.

—Claro! Um dos escravos se soltou da corrente, abriu a porta que esta trancada por fora, atacou você, depois voltou para o porão e se amarrou outra vez? Que bela teoria!

—Eu sei o que aconteceu. —disse o homem.

—Eu também. —respondeu o capataz. —Se algum deles se soltou, por que ainda estamos vivos?

Não houve resposta, e o assunto morreu ali. A viagem até o destino programado levaria mais dois dias.

Capítulo 4

 

No dia seguinte, pela manhã, os homens retiraram todos os escravos do porão frio e abafado e os levaram até o convés superior. O ar fresco do mar era reconfortante. Depois de prender com grilhões cada um dos escravos homens, apenas por precaução, alimentaram todas as pessoas a bordo, começando pelos jovens e pelas mulheres. A comida não era um manjar, mas também não era de se jogar fora, ainda mais para gente tão faminta.

O homem que estivera amarrado ao mastro no dia anterior ergueu seus olhos do prato e examinou os homens que os escoltavam. Eram diferentes dos últimos, certamente. A começar, não estavam habituados ao mar, embora não fossem completos leigos no assunto, já que conseguiam tocar o navio, mesmo a muito custo e com o dobro de homens do que seria necessário para tanto. Além disso, eram mais mansos que os marinheiros anteriores e mais humanos, ao menos aparentemente. Havia cansaço em seus rostos e algo que lembrava culpa, ou talvez apenas a sombra dela. Mesmo quando mergulhavam fundo em alguma tarefa que o navio exigia, permaneciam absortos em alguma tristeza difícil de definir. Tinham os rostos um tanto queimados pelo sol e os membros robustos de quem trabalha com a terra. Com exceção do capataz, nenhum deles estava habituado a armas, era visível. Por que, enfim, estariam ali, em um navio com oitenta escravos, dando uma de marinheiros? O homem que estivera preso ao mastro prestou, então, alguma atenção em seus companheiros de grilhões: homens simples, na maioria. Reconhecia a nacionalidade de quase todos apenas com um olhar, as pequenas diferenças entre os tons de pele e os traços de seus rostos que alguém não habituado jamais discernira. Os brancos haviam misturado as nacionalidades para dificultar a comunicação e uma possível revolta. Ainda assim, havia ali quatro ou cinco homens com os quais conseguiria se comunicar quando chegasse a hora, se fosse necessário.

Os escravos se alimentaram bem. Permaneceram no convés durante quase toda a tarde, aquecendo seus corpos com o calor do sol.  Ainda assim, fazia frio ali. A bombordo, exatamente no limite de onde os olhos podiam alcançar, estava o vulto do continente, uma aparição verde e apagada, quase uma miragem. O mar parecia uma piscina. Do meio do oceano até o horizonte, nenhum sinal de ondas. Acima do barco, gaivotas flutuavam, soltando seus grunhidos esganiçados. Pareciam felizes com os restos de peixe atirados ao mar pouco antes.

Minutos depois, pequenas correntezas começaram a ser formar nas águas tranquilas, desenhando rastros no mar. O homem que estivera amarrado ao mastro estava em um dos cantos do navio e percebeu a movimentação sutil das águas.

—Ko dara! —sussurrou ele, para si mesmo.

—O quê? -perguntou um dos homens brancos, curioso. Era o sujeito que quase levara um tiro na cabeça na noite anterior e nem se dera conta, um jovem de no máximo vinte anos, magro, com um rosto vermelho, um nariz grande e curvado e cabelos loiros finos como plumas.

—Eu disse: "nada bom"! —respondeu o homem negro. Tinha um sotaque carregado de consoantes, mas a pronuncia era boa.

—Você fala minha língua? —perguntou o jovem empregado, surpreso. —Isso é muito interessante... Mas, enfim, o que não é bom?

—Tempestade! —respondeu o homem que estivera preso ao mastro. —Das grandes! Está perto.

O jovem olhou em volta, vasculhando a água e o céu. Não havia nada que indicasse qualquer sinal de chuva. Não fosse por uma minúscula nuvem branca com um formato que lembrava uma bota, tudo seria azul.

—Não estou vendo nada que indique tempestade. —respondeu ele.

—Escute... Vocês precisam conduzir o navio para longe da costa. Tempestades são mais fortes perto da costa e...

—Ei, amigo!... —esbravejou o empregado, antes de partir. —Você não está no comando aqui, está bem? Além disso, você está enganado.

—Eu queria estar. —disse o homem negro, para si mesmo. —Ah, como eu queria estar enganado!

 

Quando as nuvens apareceram, ainda discretas, e os primeiros pingos começaram a cair, os escravos foram levados novamente para o convés inferior. Antes de descer, o homem que estivera amarrado ao mastro deu uma última olhada no oceano: o mar se agitada rapidamente, ondas consideravelmente grandes começavam a sacudir o navio e as gaivotas haviam partido já há algum tempo. O jovem empregado observou o escravo atentamente: o homem parecia conhecer bem o tempo. Talvez mais do que isso.

No porão escuro, o tempo passava mais lentamente. As horas se arrastavam. O impacto das ondas do lado de fora tornou-se, pouco a pouco, mais forte. Algum tempo depois, era impossível saber exatamente quanto, e o navio já se inclinava como um moinho de vento a cada golpe, quase a ponto de tombar. Homens e mulheres se agarravam à embarcação para não rolarem pelo chão sujo. As madeiras do barco estalavam, lembravam árvores desabando em uma floresta.  Alguns escravos mais religiosos chamavam por seus deuses, em sussurros melodiosos. Em oura situação, seria bonito. Não ali, não com todo aquele perigo do lado de fora.

Quando a porta do porão se abriu, uma lufada cortante de vento e chuva golpeou a todos com a força de um tiro de canhão. O capataz surgiu na porta.

—Ei você! —gritou ele, apontando para o homem que estivera preso ao mastro. —Precisamos de ajuda.

O outro levantou os braços. O capataz soltou os grilhões.

 

A imagem do lado de fora impressionava. As ondas invadiam o convés com força o suficiente para arremessar quem estivesse no caminho como uma peteca. O mar havia se transformado em um verdadeiro pandemônio. Nuvens violentas cobriam os céus. Baixas, densas e carregadas, giravam umas sobre as outras como galos de rinha em uma luta de vida ou morte, mandando raios em todas as direções. E havia a chuva, que desabava do céu com a força de uma cachoeira: milhares e milhares de gotas frias que feriam o corpo como agulhas em brasa.

Por um momento, a paisagem foi tudo o que o homem que estivera preso ao mastro conseguiu distinguir. Então, o capataz berrou em seu ouvido:

—O que nós fazemos?

Só então o homem que estivera preso ao mastro se deu conta: os homens no navio corriam de um lado a outro sem saber o que fazer, desesperados como formigas debaixo de uma lupa.

—Abaixem as velas, seus idiotas! —berrou ele.

Virando-se para o capataz, ele gritou:

—Precisamos de mais homens.

E berrou em línguas diferentes a alguns dos mais fortes no andar de baixo. O capataz tirou as correntes de todos no porão.  O homem que estivera preso ao mastro correu, saltando pela rede do poste principal com a habilidade de um gato, e escalou até o topo com facilidade, mesmo com o vento que o empurrava como se tivesse mãos. 

—Bae cu anam!... —berrou ele a alguns dos seus. —O outro lado!... —gritou aos homens do capataz. —Soltem as cordas!... Todas, rápido!... 

—Por quê? —berrou o capataz.

—O mastro vai quebrar! —respondeu ele. —Vamos afundar por causa do mastro!

Era verdade, o capataz percebeu. Alguns homens subiram. Um dos colonos, o mesmo jovem que falara com o homem negro algumas horas antes, estava no lado oposto do poste transversal do mastro. Chegara ali mais rápido que os outros.

—Não consigo soltar o nó. —disse ele ao homem que estivera preso ao mastro.

—Corte a corda! Agora! —respondeu o outro. —Ou vamos virar.

O rapaz obedeceu. Sacou um punhal da bainha e cortou a corda grossa. Levou longos minutos para isso. A vela desceu em parte, mas não era o suficiente. Houve mais uma pancada, mais forte que as outras, e a embarcação se inclinou tanto que as velas quase tocaram o mar. O navio estalou com violência. Os homens se seguraram como conseguiram. Alguns precisaram se prender a rede com mãos e pés. Quando a embarcação voltou a posição original, alguns dos escravos conseguiram chegar ao topo e auxiliaram. A corda foi solta, e o navio se acalmou um pouco. Ainda balançava, mas não parecia mais querer virar. Alguns dos homens comemoraram. A comemoração logo se transformaria em desespero.

 

A coisa se ergueu do mar. Não, aquilo não era uma tromba d'agua, era um monstro, um kraken adormecido nas profundezas que despertara alvoroçado para matar e destruir. Tudo girava agora. Céu e oceano se tocaram, literalmente. A coisa seguiu, lentamente, em direção ao navio. Se ela se aproximasse, tudo se dissolveria em sangue e lascas de madeira. Ninguém sobreviveria.

Todos olharam para aquilo sem acreditar. O homem que estivera preso ao mastro pensava rapidamente. Sua cabeça fervia.

—Levantar velas! —gritou ele. Sua voz era um rugido.

—Mas você disse para soltarmos... —estava a responder o jovem empregado do capataz.

—Antes!... Antes!... Olhe aquela coisa! Ela não pode nos atingir. Temos uma chance, se o vento nos arremessar para longe.

—Entendido!

Então, todos juntos, puxaram as cordas, e as velas se ergueram novamente, mais firmes que antes.

—Estibordo!... —berrou o homem que estivera preso ao mastro.

—O quê? —perguntou o capataz.

O outro parecia não acreditar naquilo.

—Direita, imbecil!... —gritou ele, de olhos arregalados. —Direita!... Direita!...

O capataz obedeceu sem se importar com os xingamentos e girou o leme o máximo que conseguiu. O monstro de vento se aproximou.

—Segurem-se firme!... Todos!... —gritou o homem que estivera preso ao mastro.

A coisa na água se aproximou ainda mais. Era vinte vezes maior que o navio. Não apenas isso: era grande o suficiente para tragá-lo como se nunca tivesse existido. Dentro do turbilhão de vento, a morte acenava. E se aquilo nas trevas, em meio aos raios, não era um sorriso, não poderia ser nada mais.

O golpe foi forte. A coisa nem chegou a tocar as velas, e o navio foi lançado para o lado, como se o próprio dedo de Deus lhe desse um peteleco. A embarcação rodopiou como um pião, tantas vezes que seria impossível contar, mas foi arremessada para longe do tornado. O impacto inicial fez com que o mastro rachasse, mas a madeira era valente e suportou. O jovem agregado, no entanto, viu seus pés vacilarem e não conseguiu se segurar. Sem apoio, caiu no vazio e teria se espatifado no chão da embarcação se o vento da coisa monstruosa não o tivesse arremessado quase uma centena de metros à frente.

A coisa se afastava do navio agora e se dissipava, à medida que se dirigia para a costa. Em segundos, só restavam o mar revolto e as nuvens escuras no céu. Com olhos atentos, o homem que estivera preso ao mastro vasculhou o oceano.  Distinguiu o pontinho insignificante em meio às ondas.

—Lá! —gritou ele ao capataz. —Esquerda! Esquerda!

O homem obedeceu. Os ventos agora ajudavam. Eles chegaram rápido, mas não era o suficiente. O rapaz nadava pior que um tijolo. Em breve, afundaria e não retornaria mais. E assim aconteceu. Quando o navio atingiu o ponto exato, não havia mais nada boiando na superfície. O homem que estivera preso ao mastro suspirou fundo para tomar coragem. Pulara de lugares mais altos antes, mas nunca em um mar tão revolto. Mas ele o fez. Como uma águia que mergulha do céu para apanhar o peixe, ele saltou.

Quase não houve impacto. O homem entrou no mar como um punhal. Aquilo era um universo de gelo. A água machucava ainda mais que a chuva, dificultava a respiração. O sal castigava os olhos e as feridas abertas. Do lado de baixo, no entanto, o mundo era surpreendentemente mais calmo e mais claro que na superfície. Encontrar o jovem agregado ali embaixo foi fácil; difícil foi alcançá-lo. Ele submergia com a expressão do mais puro horror em sua face, quando uma mão forte agarrou a sua.

A subida parecia eterna, mas eles conseguiram. Cordas foram jogadas, e alguns dos homens negros desceram para ajudar o homem desmaiado a subir. Não muito depois, o rapaz foi jogado em um dos cantos do navio, ainda meio morto. O homem que estivera preso ao mastro encarou o capataz.

—Abaixar velas! —disse ele, quase sem fôlego.  

—Abaixar as velas! —berrou o capataz. Os homens obedeceram.

—Obrigado!... —sussurrou o jovem, aos prantos, assim que retomou o fôlego. Dirigia-se, obviamente, ao homem que o salvara.

—Obrigado!... Obrigado!...

O homem que estivera preso ao mastro caiu exausto contra a parede mais próxima. Ali, abaixado, ele fez uma prece. Precisava do navio inteiro. Mais do que todos ali, precisava chegar à fazenda. A tempestade perdia força.

Meia hora depois, o jovem empregado e o homem negro estavam no camarote, enrolados em cobertores, juntamente com os outros homens que entraram no mar. O jovem estendeu o litro de cachaça ao outro, que absorveu um gole considerável antes de devolver a garrafa. A coisa arranhou sua garganta, mas aliviou o frio.

—Eu estaria morto agora, se não fosse por você. Obrigado!

—Em meu povo, não agradecemos. O que está feito está feito.

—Ainda assim, obrigado! —disse o jovem.

Ele fez uma longa pausa antes de continuar.

—Meu nome é William. William Dias.

—Oleri. —respondeu o outro. —Me chamo Oleri.

—Nome bonito. O que significa, em sua língua?

—Significa “promessa”.

Capítulo 5

Na manhã seguinte, eles chegaram ao porto em segurança. Os escravos estavam no convés superior. O capataz não os prendeu mais. Estava triste, mais triste agora. Olhou para o homem negro que os salvara com um visível aperto no coração. Descarregaram a carga e deram um trocado ao vigia do píer para guardar bem o navio. Em pouco tempo, já haviam apanhado as carroças e partido.

 

Oleri era seu nome. O homem que estivera preso ao mastro do navio durante quase toda a viagem e que, em outra vida, fora um príncipe observava o horizonte. Com o rosto marcado pela vida difícil repleto de apreensão, mal sentia o balanço do trote dos quatro cavalos baios. A paisagem passava lentamente, mudava a cada momento: de um chão verde, feito apenas de grama, foram a um terreno pedregoso e então, repentinamente, entraram em uma estrada no meio de um manguezal. Agora, aproximavam-se de uma terra escura, com uma mata densa e árvores muito altas. O mar ficara para trás, muito distante.

Montados em seus cavalos, os empregados acompanhavam as cinco carroças, que seguiam em fila indiana. 

—Os outros escravos já chegaram? —perguntou o jovem empregado ao capataz.

—Não. —respondeu o chefe. —Eles devem chegar antes do anoitecer.

Oleri fingiu não os estar ouvindo. Mas ouvia com atenção cada palavra.

—Precisamos salvá-lo, Dantas. Ele nos salvou. Não podemos deixá-lo morrer.

—Eu sei. —respondeu o capataz. —Quando chegar a hora.

 

Seguiram por aquela estrada por horas. A terra ali era macia, dava para perceber pelo som das ferraduras. O lugar não parecia muito movimentado. Em volta, apenas a mesma mata fechada, as mesmas árvores velhas e muito altas, retorcidas como esculturas góticas. De tempos em tempos, pequenas criações de bois ou hortas coloridas abriam clareiras na mata, mas eram esporádicas.

Ao final de algumas horas, viraram à direita e entraram em uma estrada um pouco mais larga. Oleri observou a pequena placa de madeira meio coberta pelo mato. Dizia apenas: “Serena!”. Não demorou muito, chegaram a um vilarejo, um aglomerado de pequenas casinhas de madeira sem cor que se erguiam sobre um chão úmido, quase um banhado. Alguns homens armados com espingardas esperavam ali. Um deles falou com o capataz:

—O patrão está preocupado.

—Pegamos uma tempestade.

—Explique isso a ele! Como eu disse, ele está preocupado.

E os cavalos seguiram novamente. A distância entre o vilarejo e a grande casa de madeira era enorme. Era uma construção simples, sem qualquer traço de beleza em todo o seu tamanho, mas visivelmente forte. Em outros tempos, fora branca, aparentemente. Era inegável que não havia ali nenhum sinal da fortuna do dono daquelas terras. Alguém que compra um navio com oitenta e duas pessoas dentro deveria ter dinheiro para morar em algum lugar melhor.

Os escravos saltaram. De cabeça baixa, Oleri observou o homem volumoso, mais forte que gordo, que se aproximava do capataz. Era o proprietário, certamente.

—O que houve? —perguntou ele.

—Tempestade! —respondeu o capataz. —Viemos de navio para agilizar e acabamos nos atrasando.

O rubor na face do homem gigantesco foi, pouco a pouco, diminuindo.

—Tudo bem, então! —disse ele. —Por enquanto.

—Os outros já chegaram? —perguntou o capataz.

—Ainda não. Mas devem chegar em pouco tempo.

O dono da terra observou atentamente os escravos, um a um. Oleri olhou em seus olhos, quando ele o encarou. Vira pessoas ruins o suficiente para conseguir reconhecê-las. Não era o caso daquele homem. Não, ele não era má pessoa, aparentemente, mas havia algo em seu rosto: medo, ele seria capaz de apostar. Mas medo do quê?

O homem chamou um dos empregados, que se aproximou.

—Reúna dois homens, colham algumas verduras e matem alguns bois para esses pobres coitados comerem. Eles parecem acabados. Com um sinal, o dono da propriedade deu ordem para que levassem os escravos.

Aos fundos da propriedade, a algumas dezenas de metros do casarão, um galpão podre de madeira, de uns duzentos metros quadrados, permanecia cravado na grama alta, feio como um cancro.  O lago, por outro lado, era de uma beleza exuberante: largo, de se perder de vista as margens, e muito comprido. Dezenas de ilhotas surgiam em sua extensão, abrigando o que pareciam ser laranjeiras e mangueiras cheias de frutas coloridas. As águas eram escuras, mas tinham um brilho quase metálico, refletindo o céu cor de chumbo como um espelho. Era quase impossível divisar a margem à frente, mas havia construções lá também. A mais visível era uma torre muito alta, que se erguia bem acima das árvores.

 

Os escravos foram conduzidos pelos agregados. Antes de chegar ao barraco, Oleri sentiu uma mão calejada segurar seu pulso. Era o jovem que ele salvara no mar.

—Venha comigo! —disse o garoto, seco.  —Agora!

Oleri o seguiu por dentro das árvores. Afastavam-se dos outros. Caminharam por uma trilha da largura de um ombro. Parecia uma daquelas trilhas abertas por animais selvagens, não por facões. O frio, ali, era de fazer temerem os ossos, pior que na beirada do lago.

Chegaram a uma clareira. Um pássaro muito bonito gritou incomodado e voou para dentro da selva. Era a maior águia que Oleri já havia visto, e tinha um penacho na cabeça, como um verdadeiro rei. No chão pantanoso, havia um pequeno barraco e, debaixo dele, um cavalo jovem.

—Na bolsa, há comida e água para uma semana. —disse o jovem. —Siga em frente naquela direção e você encontrará uma cidade bem mais tranquila, há uns cinquenta quilômetros. Não fale com ninguém. Há uma pousada velha, com a carcaça de um boi na cerca. Fale com o Jeremias. Diga que o Dantas o mandou. Ele o ajudará a escapar.

Oleri abaixou a cabeça, pensativo.

—Não vou a lugar nenhum. Ainda não.

O rapaz suspirou, compreensivo.

—Sei que aquele lugar parece bom. Mas, acredite em mim, aquilo ali é o inferno na terra.

—Não é isso. —respondeu Oleri. —Não posso ir. Ainda não. 

Ele apertou o ombro do jovem.

—Mas sou grato por isso, meu amigo. Mantenha o cavalo aqui até amanhã pela manhã, e eu partirei.

O jovem refletiu. Era um pedido estranho, mas ele aceitou.

—Tudo bem. Mas se demorar muito pode ser tarde.

Os dois retornaram sutilmente. O jovem empregado rezou para que ninguém notasse a ausência deles, mas, com tantos escravos e agregados reunidos, era fácil passar despercebido.

Oleri se dirigiu ao barraco, em volta do qual os escravos se amontoavam. Eram homens e mulheres de todas as idades, acorrentados há tanto tempo que já haviam se esquecido do sabor da liberdade. Pessoas tristes e sem esperança. Afastado do grupo, sentado em um tronco tombado, um dos escravos permanecia sozinho, como se o simples olhar dos outros pudesse feri-lo. Se é que era mesmo um escravo, já que usava roupas quase tão boas quanto os outros, calças de um brim azul e grosso e camisa de manga, além do casaco grosso de lã e do chapéu escuro.

Oleri se aproximou dele e seus olhos se acenderam.

—Wa ìrántí ko le Yi, ore mi (Nossas lembranças não podem mudar o passado, meu amigo). —disse ele.

—Fi mi sil! (Deixe-me em paz)! —grunhiu o outro.

—Ti na lati nin aba? (Essa é a maneira de falar com seu rei)?

O jovem sentado se ergueu e, por alguns segundos, permaneceu de costas, estático como uma montanha. Depois, lentamente, voltou-se ao homem que lhe dirigia a palavra. Seus lábios tremiam, seus olhos se avermelharam. Ele caiu de joelhos.

—Mi aba (Majestade)! —disse ele.

— Eyi ko wulo! (Isso não é necessário!). —respondeu Oleri. — Ko si mo! (Não mais!).

O escravo se aproximou. Ainda chorando, trocou um abraço forte com o recém-chegado.

— Wọ́n ní tire yóò kú! (Disseram que você havia morrido!).

— Nwọn kuna, fun akoko keji! (Eles falharam, pela segunda vez!)

—Niba ni bai! bayi ti o ba pada (Há esperança, então! Agora que você voltou).

Oleri meneou a cabeça.

Arakunrin mi da mi. Awon alawo si dá. Ko si ijọba mọ. Gbogbo won gba. Wọ́n kó ọrọ̀ wa, wọ́n sì fi ilẹ̀ nìkan sílẹ̀. Ṣugbọn o jẹ nla lati ri ọ lẹẹkansi, ọrẹ mi atijọ! Kilo sele si e? (Meu irmão me traiu. E os brancos o traíram. Não existe mais reino. Todos foram levados. Levaram nossa riqueza e deixaram apenas a terra para trás. Mas é muito bom revê-lo, meu velho amigo! O que aconteceu com você?).

Wọ́n tan mi jẹ. Ati pe a ran mi si bi. Mo wa nibi, ni gbogbo igba. Ọdun mẹwa. (Eu fui enganado. E fui mandado para cá. Eu estive aqui, o tempo todo. Dez anos).

—Ati idi ti ọpọlọpọ awọn ẹrú (E para que tantos escravos?) —perguntou Oleri. —Ko si ohun ọgbin (Não vejo nenhuma plantação).

O barqueiro se dobrou sobre o próprio ventre como se uma dor inesperada o atingisse e se apoiou em uma árvore próxima.

—Mo da won (Eu os traí). —respondeu ele. —Mo da awon eniyan wa! (Eu traí nosso povo!).

—Kini o tumọ lati sọ? (como assim?) —perguntou Oleri. —Kini ana ṣẹlẹ nibi, Rafti? (O que está acontecendo aqui, Rafti?).

 

A conversa foi interrompida pelo ruído seco do trote dos cavalos. Mais cinco carroças se aproximavam, no fim da estrada. Oleri correu, o mais rápido que pode, para a frente da propriedade. Os homens armados reclamaram por vê-lo na frente da casa, mas não deram maior importância. Não havia mesmo para onde fugir. Pouco depois, seguindo o dono da propriedade, todos se dirigiram para a estrada, até os escravos. Oleri permanecia à frente do grupo.

Os animais pararam. Mais quatro dezenas de homens e mulheres desceram dos veículos. Mais escravos para se juntar aos outros. Formavam um pequeno formigueiro, através do qual era impossível enxergar qualquer coisa. Mais cinco ou seis homens armados escoltavam o grupo e deram ordem para que se espalhassem.  

O dono da propriedade se aproximou dos veículos. Os homens o seguiam.  Passaram por Oleri, que parecia não os enxergar. Não, não havia nenhuma criança ali. Oleri sentiu o coração em seu peito parar. Não podia ser. Mas quando o grupo se dissipou, ele percebeu, sobre uma das carroças, o vulto do menino. Seis, talvez sete anos.

Oleri não se movia, não tinha coragem para se mover. O garoto virou o rosto na direção do grupo, em sua direção. Por um momento, Oleri fechou os olhos e suspirou. Voltou a abri-los em seguida.

Em meio segundo, seus membros se encheram de força. Ele correu e atravessou a pequena multidão como se ela não existisse.

—Akim! —gruitou ele.

A face do menino se acendeu assim que reconheceu o homem.

—Baba! (Pai)! —berrou o fgaroto, e correu.

Oleri agarrou o garoto e desabou sem forças. Pareciam duas crianças chorando agora. O jovem agregado finalmente entendia tudo.

Por um momento, ficaram ali, pai e filho. Acima deles, apenas o céu azul.

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