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A viagem até minha nova casa levou quase duas horas. Eu nunca mais veria a luz do dia em liberdade novamente, tinha certeza. E estava certo. Passei quatro meses no presídio, aguardando pelo julgamento. Como tinha curso superior, dividi uma cela minúscula com dois sujeitos frangotes. Estava seguro ali, atrás das grandes de aço, mas um preso muito forte cheio de cicatrizes no rosto me ameaçou de morte, furioso por eu ter matado uma criança. Graças a isso, o pátio se tornou um terror diário em minha vida por algumas semanas, mas o sujeito que me ameaçara fora encontrado morto poucos dias depois, com o pescoço quebrado e um braço arrancado. Foi então que percebi que aquelas coisas estavam me protegendo, por alguma razão. Outro sujeito, um pouco mais fraco que o primeiro, também me ameaçou, mas eu mesmo cuidei daquele. Depois da briga, acabei descobrindo que era muito mais forte do que seria capaz de imaginar, e mandei o homem direto para o hospital. Não fui mais incomodado na cadeia depois daquilo.

 

Em todo aquele tempo no presídio, recebi apenas uma visita: uma legista da polícia. A mulher estava apavorada. Eu pude perceber o medo latente em seus olhos e em seus gestos no momento em que a vi. Nós conversamos na sala de visitas, através da tela.

—O que aconteceu naquela noite? —perguntou ela, logo após se apresentar. —Por que você matou sua família? Eu preciso saber.

—Você não iria acreditar. —respondi.

—Você pode tentar. —retrucou ela. —Eu vi os corpos.

Eu começava a entender a visita.

—E como eles estavam? —eu perguntei. —Os corpos?

Ela suspirou e engoliu em seco. Tremia um pouco agora.

--Não eram corpos. Não havia nada dentro deles. Nenhum órgão, nada. Eram como cascas ou casulos. E eu acho que alguma coisa saiu de dentro deles.

—Eu sei.

—Posso testemunhar. —afirmou a garota. —Se você me disser o que procurar.

--Não procure nada. —respondi. —Vá para casa e finja que não viu nada, ou pode acabar aqui, no meu lugar, ou pior. Essas coisas não vão parar.

—Há mais deles por aí? —ela perguntou

—Pode apostar.

—Quantos?

—Milhares.

—Eu posso...

—Não! —eu gritei. —Não existe você. Vá para sua casa! Agora!

A mulher ainda tentou argumentar, mas acabou desistindo e partiu, um tanto desolada. Era uma boa pessoa, eu percebi. Só queria a verdade, mas a verdade podia matá-la, como matou aquela pobre coitada, dias antes, por causa de um simples exame de DNA. Na verdade, enquanto observava a legista se afastando, não pude deixar de perceber que ela e a garota morta também eram muito parecidas. Passariam, facilmente, pela mesma pessoa. Definitivamente, eu me convenci, eram a mesma pessoa. Eu sabia que conhecia aquela garota de algum lugar.

 

E o tempo passou. Conheci meu advogado poucos dias antes do julgamento: era um sujeito presunçoso e arrogante, mas perspicaz como uma raposa. Passava um pouco dos cinquenta, tinha um rosto redondo e vermelho, olhos de gavião e um sorriso tão largo e marcado pelo sarcasmo que me fazia lembrar o gato Cheshire. Disse que eu deveria permanecer calmo e me garantiu que tudo acabaria bem, para ele pelo menos. Seus honorários eram uma fortuna e ele se auto valorizava muito além do que parecia normal ou mesmo saudável, mas suas credenciais eram boas.

Só percebi qual seria sua estratégia de defesa quando foi tarde demais. Por alguma razão difícil de entender, meu próprio advogado, a quem eu pagava uma verdadeira fortuna, acreditava que me trancafiar pelo resto da vida em um manicômio judiciário era uma ótima coisa e fez de tudo para que eu parecesse o mais louco possível, incluindo um atestado psiquiátrico que garantia que eu não tinha qualquer controle sobre minhas ações. De onde havia saído aquele psiquiatra, eu não sabia. O fato era que o sujeito garantia que me conhecia e que havia me examinado algumas vezes. Disse que eu sofria de esquizofrenia paranoide (um tipo residual, que só se desenvolvia com força na vida adulta) e que eu havia matado minha família durante um surto agudo de paranoia. E meu advogado arranjou testemunhas: um homem e uma garota que relataram em detalhes o momento em que estive em um prédio comercial procurando por um morador inexistente, com uma criança inexistente nos braços. Além deles, havia minha vizinha de rua, que disse ter me visto fuçando em uma caçamba de lixo como um cão sem dono. Isso sem falar nas câmeras de trânsito que flagraram o momento em que abandonei meu carro no meio da rua, novamente com uma criança inexistente nos braços, congestionando meia cidade. Além disso, eles afirmaram que eu havia perdido, por alguma razão difícil de entender, quase dez anos da minha vida. Disseram que meu filho tinha quase dez anos, não dez meses, como se algo assim fosse possível, e arranjaram muitas testemunhas para provar o fato: vizinhos, amigos e parentes de minha falecida esposa. O teatro foi fantástico, mas eles não me enganariam mais.

O promotor tinha outra história: disse que eu era um psicopata frio, um assassino calculista. Disse, também, que eu havia descoberto, anos antes, que minha esposa havia tido um caso durante alguns meses e que nosso filho era, na realidade, filho de outro homem. Mais do que isso, o promotor alegou que eu havia matado o amante de minha esposa, anos antes, e que o DNA de meu filho morto na realidade batia com o DNA da vítima encontrada sob o viaduto, fosse quem fosse. Eu havia tramado o assassinato de minha esposa e de meu filho por dez anos, segundo a acusação, e me fingir de louco era apenas parte do plano, uma espécie de teatro. E o promotor também arranjou uma testemunha, o consultor da polícia que estivera em minha casa dias antes, fazendo perguntas suspeitas. Agora eu descobria que o homem sempre desconfiara de mim, desde a época do assassinato, pois algumas pessoas que passavam pela rua naquela noite relataram ter visto um sujeito vagando pela cidade com um terno marrom estranho rasgado e ensanguentado. O policial apenas demorou para me identificar, dada a total ausência de informação, levara dez anos para isso, mas finalmente conseguiu me encontrar. Um antigo colega de trabalho reconheceu meu terno ridículo pela foto e me identificou.

Quando, durante o julgamento, o promotor me perguntou se eu havia matado aquele homem, naquela noite, pareceu surpreso com a resposta. Eu disse a verdade, disse que não tinha certeza, que podia jurar que não, mas que as imagens que surgiam em minha mente diziam o contrário. O promotor resolveu não me inquirir mais. Já meu advogado sorria de forma cada vez mais aberta. Quando contei a todos sobre os alienígenas que estavam, lentamente, tomando nosso planeta, os jurados já me consideravam um louco de pedra. Eu ainda contei a eles sobre o homem que eu havia encontrado no apartamento e que na realidade era meu chefe, sobre a mulher assassinada que apareceu viva dias depois, sobre os comportamentos estranhos de minha esposa, mas nada mais podia reverter o veredito. Eu fui considerado louco e absolvido. Preferia mil vezes passar trinta anos na cadeia a permanecer o resto da vida em um manicômio, mas minha vontade já não contava.

 

Quando me despedi de meu advogado canastrão em minha cela, eu o questionei se, em algum momento, ele havia considerado que minha história poderia ser verdadeira. Ele me deu três tapinhas nas costas e disse que acreditava em mim. Quando as grades se fecharam, antes de partir, ele ainda concluiu:

—Mas eles vão vencer, de qualquer jeito. Temos de escolher o lado certo.

Seu sorriso de gato se apagou, e só então percebi que o sujeito estava apavorado. Tudo fazia parte do plano. Eu estava condenado a passar o resto de minha existência miserável nas sombras, em meio a pessoas insanas e sem juízo, cercado por muros visíveis e invisíveis. Eles haviam me condenado aquilo, mas por quê? Por que simplesmente não me matar? Seria muito mais fácil, muito menos cruel. Ou talvez eles quisessem apenas me torturar, por alguma razão difícil de entender.

 

De qualquer forma, no dia seguinte, amanheci no hospital psiquiátrico da cidade, já completamente dopado. Permaneço aqui até agora, há mais de três meses. Meu quarto é escuro, mesmo com as lâmpadas acesas, e eu não tenho qualquer conforto. Meu único momento de prazer é o banho de sol, duas horas todos os dias, no final da tarde, quando posso caminhar livremente pelo longo gramado verde cravejado de figueiras e às vezes esqueço de tudo por alguns minutos.

Eu achava que a cadeia era assustadora, mas este lugar é muito pior, muito mais sombrio e perigoso. Alguns dos internos são de arrepiar: eu conheci uma moça que fala com gatos (e os bichos obedecem), um anão que já mandou dois enfermeiros para o hospital, uma mulher muito velha que diz conversar com o diabo (só para constar, eu não duvido) e um senhor de oitenta e quatro anos que, quando jovem, acabou devorando os intestinos da própria esposa na noite de núpcias. Isso sem falar nos malucos irritantes, que são ainda piores: uma mulher que grita o tempo todo, um rapaz que gosta de enfiar a própria cabeça na terra como um avestruz e meu companheiro de quarto, o pior de todos. O retardado passa cada segundo do dia e da noite se balançando para frente e para traz como uma bolinha de ping-pong e geme o tempo todo como se estivesse com medo ou com dor. Passar o dia todo com ele, em um cômodo minúsculo, é um verdadeiro teste de sanidade. E eu estou falhando. Cheguei muito perto de arrancar meus próprios cabelos.

 

E algo realmente assustador aconteceu aqui. Alguns dias atrás, nós nos preparamos para mais uma tarde de visitas. Antes de tudo, é preciso esclarecer que, quando faz sol, os internos encontram seus familiares no pátio do manicômio, debaixo das sombras das árvores. Seria algo bonito em outro lugar, mas certamente não aqui: eles nos amarram com camisas de força, e cada um de nós tem os pés algemados e presos a correntes. Alguns internos são agraciados até mesmo com focinheiras, algo simplesmente bizarro. Os parentes recebem autorização para permanecer no pátio por algumas horas, depois partem. Dada a beleza do verde e dos jardins coloridos, os familiares têm a tênue impressão de que o lugar não é tão ruim, uma ingênua mentira, que traz alguma esperança a esse mundo de trevas. Ah, se eles vissem as solitárias, mudariam de ideia no mesmo instante.

Na tarde em questão, eu estava preso a uma corrente grossa, vestindo minha camisa de força, sentado em um dos bancos do jardim, ouvindo a gemedeira irritante de meu colega de quarto, quando uma mulher loira e alta e um adolescente com a cara salpicada de espinhas caminharam em minha direção.

—Aí está você. —disse a mulher.

O adolescente fungou. Estava gripado ou algo do tipo. Era um garoto magro demais, desengonçado como um pato e muito feio.

—Louco errado. —respondi, sem me dar ao trabalho de erguer os olhos. –Vocês estão procurando outra pessoa.

—Não mesmo. —retrucou a mulher. —Estamos procurando você. Não nos reconhece?

Eu os analisei com atenção e me ergui num salto. Eu nunca os havia visto, tinha absoluta certeza, mas sabia exatamente quem eram.

—Não pode ser. —retruquei. —Eu matei vocês. Eu...

—Não, você matou os outros, exatamente como deveria ser. –respondeu a mulher. —Nós estamos esperando você, quando isso tudo terminar. Você sabe onde nos encontrar. Apenas tente lembrar.

—Até logo, papai. —disse o garoto.

—Não! —eu gritei, e continuei gritando. —Vocês estão mortos... Mortos... Mortos…

A mulher e o garoto se afastaram. Os outros loucos foram contagiados pela minha agitação e explodiram em um verdadeiro pandemônio. Os enfermeiros tentaram contê-los, mas não foram capazes. Os parentes tiveram de partir às pressas.

—Eles!... —eu gritei, aos enfermeiros, aos médicos e aos outros pacientes, apontando para a mulher e para o garoto, mas não fui ouvido no meio de toda aquela algazarra. –Eles!...–eu voltei a gritar, ainda mais alto, e fiquei gritando como um verdadeiro idiota.

—Cale a boca, imbecil! –sussurrou uma voz que eu certamente não reconhecia. –Não chame tanta atenção!

Eu demorei para localizar o dono daquela voz. Era meu colega de quarto. Ele me lançou um olhar discreto de reprovação, mas continuava se balançando, gemendo e babando como um verdadeiro retardado. Por que ele fingiria algo assim, eu me perguntava, até que finalmente compreendi. Nos muitos prédios que cercavam o manicômio, nas ruas, em todo lugar, uma verdadeira legião: em suas janelas e sacadas, em seus carros, nas calçadas, ali mesmo, no manicômio, médicos, enfermeiros (com exceção de dois ou três) e até mesmo alguns dos pacientes. Milhares e milhares de pessoas, encarando-me com aqueles olhos vazios, examinando-me como se eu fosse uma coisa, um utensílio defeituoso. Muitas e muitas pessoas da cidade, transformadas naquelas coisas. Era o fim.

 

Depois de mais um ataque de pânico, fui trancado na solitária, neste quarto podre, de paredes úmidas, gotejantes e frias. Não há qualquer cor aqui além do cinza escuro do concreto e do verde musgo dos fungos. Isso sem falar nas baratas e nas fezes de rato. Eu estou enlouquecendo, de verdade, e preciso terminar o que comecei antes que não seja mais capaz.  

Chego, então, ao fim deste triste relato. Deixo essa pequena narrativa como herança para aqueles que acreditarem em mim. Eles estão vencendo! Espero que nenhum deles descubra estas míseras folhas de papel, enterradas em seu mísero esconderijo. E tudo o que eu posso dizer é: não se deixem enganar! Eles estão entre nós. Não confiem em ninguém! Prestem muita atenção nas pessoas a sua volta, a qualquer transformação, prestem atenção em seus hábitos, em seu comportamento! Não fechem os olhos, como eu fechei, e talvez ainda haja esperança para todos nós. Ou talvez estejamos todos condenados, para sempre. 

Para mim, é adeus!

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P.S: Passaram-se dois dias desde minhas últimas palavras. Como eu não percebi antes? Algo de muito estranho está acontecendo comigo. Três meses neste lugar infernal, três semanas na escuridão de um quarto isolado, e eu mal toquei na comida. Vomitei cada grão de arroz, cada gota de água. Não sou mais eu mesmo. Apesar da fome extrema, delirante, não consigo colocar nada de comestível na boca há semanas.

Horas atrás, porém, eu quase devorei uma barata. Eu agarrei o bicho, o segurei entre meus dedos, e a vontade de absorvê-lo, de senti-lo em minha boca, foi quase insuportável. Meu estômago se revirou e se abriu como uma boca cheia de dentes. Eu não sou mais eu. Estou me transformando em um deles. Não sei como isso é possível, mas é mais absoluta verdade.

Então, poucas horas atrás, eu comecei a senti-lo: o outro. Está dentro de mim, na minha mente, e agora posso até mesmo ler seus pensamentos, ouvir a sua voz. É um ser desprezível, maldoso, sem sentimentos. E está tomando conta de mim, possuindo meu corpo. Não sei se resistirei por muito tempo. O adeus agora é definitivo.

 

Um pardal acabou de pousar no parapeito deste cubículo desprezível. Gostoso demais! Delicioso e tenro! Eu o encarei por alguns segundos, e o pobrezinho congelou. Estiquei meu braço pelas grades e o apanhei. Agora ele está em minha mão. Seu coração bate, vivo. Ele precisa ser meu, ele pede para ser meu. Eu já sinto o gosto.

O outro está chegando. Somos um agora, eu posso sentir. Preciso esconder esta mensagem... Preciso? Sim, preciso! Mas por quê? Porque nós, eles, não podemos encontrá-la. Eles... Nós... Eles... É o fim!...

 

 

P.S: Não, não é o fim: é apenas o começo. Finalmente retornei. Quanto tempo aprisionado nesta mente primitiva, dentro deste ser desprezível! Eu não estava me transformando em um deles. Isso seria impossível. Eu sempre fui um deles. Um de nós, para ser mais claro.

 

Minhas lembranças mais antigas são de minha juventude em nosso antigo planeta. Há muitas e muitas eras, quando já não havia qualquer esperança para nossa espécie e nenhum lugar para fugir na imensidão vazia do espaço, encontramos, nos confins do universo, um pequeno planeta azul cheio de vida, tão diferente de nossa casa cinza e seca. Uma esperança!

Nós decidimos fugir antes de morrermos de fome, e nos projetamos pelo espaço. Foi um ato desesperado, uma última chance. Eu fui um dos primeiros a partir: era muito jovem na época, um adolescente para minha espécie. Nós tínhamos a missão de preparar o lugar para os outros.

Viajamos em uma velocidade muito alta, na qual o próprio tempo se tornara obsoleto, ainda assim a viagem foi muito longa para os que estavam dentro das cápsulas. Quando chegamos aqui, estávamos todos muito doentes: a maioria dos pioneiros acabou morrendo pouco depois de desembarcar, outros haviam se perdido para sempre na escuridão infinita do espaço, nunca chegaram ao destino. Além disso, os desbravadores deste mundo selvagem precisariam esperar muito tempo pelos outros: graças ao efeito da dilatação temporal causado pela velocidade da viagem, os últimos a sair de nosso planeta, apesar dos poucos dias de diferença, levariam anos e anos para aterrissar nesta nova terra. Contudo, apesar de todas as dificuldades da viagem, estávamos felizes por chegar a nossa nova casa.

E que surpresa tivemos quando encontramos, neste planeta tão jovem e primitivo, uma espécie ligeiramente evoluída. Eles já haviam descoberto o fogo, já faziam instrumentos de pedra. Nós vivemos entre eles por muito e muito tempo, ensinamos nossos conhecimentos mais básicos, magia e milagre para eles. Vivemos como verdadeiros deuses: fomos reverenciados, ovacionados, venerados. Recebemos, com alegria, seus sacrifícios e oferendas: seus animais, suas crianças, as crianças de seus escravos. Mas o tempo passou, e tudo mudou.

Quando suas primeiras cidades foram erguidas (com nossa ajuda, diga-se de passagem) e seus primeiros tiranos surgiram, nós fomos perseguidos. Éramos apenas algumas dezenas na época. Se ao menos tivéssemos nossa tecnologia, nossas armas, dissolveríamos todos eles em um piscar de olhos, reduziríamos cada um a menos que átomos. Mas eles eram muitos, e alguns de nós acabaram morrendo.

Nós passamos a nos esconder. Nossa habilidade de camuflagem, ao contrário do que a maioria parece acreditar, é genética. Uma habilidade muito útil. Em nossa velha terra, em tempos imemoriais, ela nos ajudou a sobreviver a predadores terríveis, seres mais fortes e mais inteligentes do que qualquer coisa que já tenha passado por este jovem planeta. Quem diria que a mesma habilidade precisaria ser usada para enfrentar seres tão inferiores?

O tempo passou. Alguns dos nossos começaram a chegar, século após século. Rápido, em termos astronômicos, mas não rápido o suficiente, por isso continuamos a nos esconder. Desenvolvemos alguma tecnologia com o parco material que encontramos neste planeta. Não foi o suficiente. Alguns de nós continuaram morrendo. Nosso tamanho, inteligência e velocidade são quase divinos se comparados à espécie dominante deste pequeno planeta, ainda assim estávamos sendo exterminados. Encontramos doenças aqui que jamais havíamos imaginado, e até a atmosfera oxidada do planeta, apesar de quase idêntica à de nossa terra natal, passou a nos fazer mal. Mesmo assim, perto de nossa velha terra, o novo lar parecia um paraíso.

Eu vivi muito tempo aqui, tive vários nomes, várias formas: reis e mendigos, burgueses e mestres de escravos, navegadores e guerreiros. Eles são uma espécie estranha, os homens: frágeis como gravetos, sentimentais, fascinantes em sua mediocridade. Egoístas e prepotentes, acham-se importantes e especiais, mas não são, e poucos percebem isso. São, contudo, verdadeiros mestres da mentira (palavra que nós nem ao menos conhecíamos): dissimulados, peçonhentos em seus planos. Fomos descobertos muitas vezes ao longo de todo esse tempo, mas sempre demos um jeito de resolver o problema. Evoluímos para nos esconder melhor. Mas eles também evoluíram.

Tornou-se cada vez mais difícil sobreviver, então inventamos algo para distraí-los. Enchemos suas vidas de futilidade e ganância, desenvolvemos formas, cores e cheiros que os fascinavam e os hipnotizavam. Eles caíram na armadilha e nos esqueceram por muito tempo. São seres fúteis e foram traídos por sua própria habilidade de enganar: enganaram uns aos outros pela simples chance de conquistar mais vaidade e futilidade: fizeram guerras, queimaram muita carne.

Suas vidas se encheram de coisas sem valor, sem que eles nem ao menos se dessem conta. Cidades modernas foram erguidas, centros de desejos vazios. Nós os ajudamos. Construímos coisas fascinantes e os ensinamos a construir outras. Sua ciência melhorou. Eles chegaram a sair da terra: "um pequeno passo para o homem", pequeno demais para que todos se dessem conta de sua pequenez. E nós continuamos colaborando, usamos seus esforços para desenvolver nossa própria tecnologia, ainda retrógrada demais se comparada à que deixamos para trás, mas já muito melhor. Algumas invenções foram interessantes para mantê-los ainda mais afastados uns dos outros, para isolá-los ainda mais: telefones, televisão, jogos, redes sociais. São criaturas patéticas em suas fantasias, preferem à mentira reconfortante à verdade que está diante de seus olhos.

Os outros de nossa espécie chegavam cada vez mais rápido, cada vez em maior quantidade. Anos e anos se passaram, e já dominávamos este planeta. Nossa espécie era mais inteligente e mais forte do que qualquer forma de vida por aqui. Construímos coisas inacreditáveis, monumentos da ciência para este planetinha tão atrasado, ainda apenas um resquício se comparado a nossa velha tecnologia, mas já um grande avanço. Dominamos sua cultura, suas universidades, sua política. Não havia mais qualquer forma de poder que não nos pertencesse. Uma grande leva dos nossos estava para chegar ao planeta, uma quantidade realmente absurda de nossa espécie, então estaria acabado.

Quando já achávamos que havíamos vencido a guerra, algo aconteceu: começamos a perder. Tudo aconteceu muito rapidamente. Fomos dizimados, um a um, milhares e milhares dos nossos. Nós os havíamos subestimado. Eles não. Os humanos, de alguma forma, acabaram nos descobrindo e desenvolveram, por conta própria, com a tecnologia que havíamos ajudado a construir, uma arma terrível, que nos revelava e nos destruía. Apenas alguns de nós sobreviveram. Fomos revelados publicamente, e o fim parecia muito próximo.

E como uma raça tão primitiva havia conseguido tal proeza? Descobrimos, tarde demais: a mentira e a dissimulação humanas eram a chave. A evolução armou-os com armas difíceis de combater. Eles nos despistaram e nos enganaram por anos enquanto tramavam tudo aquilo. Só havia uma chance de vencê-los: ser um deles. E havia um deles, um em especial, o responsável por tudo aquilo, que precisava ser encontrado e morto rapidamente. Eles o chamavam apenas de "J".

O homem parecia um espectro, era impossível de localizar, mas ele tinha aliados um pouco menos cuidadosos. O principal deles foi localizado. Eu o aniquilei com meus próprios dentes, traguei suas memórias. Mesmo assim foi impossível encontrar o líder, e estávamos muito perto do fim. Só havia uma saída...

 

Nós havíamos construído aquela máquina lentamente: começara como um insuspeito acelerador de partículas, justificava o gasto com pesquisas. Além disso, a máquina demandara um grande esforço conjunto de nossa espécie para ficar pronta, todas as nossas mentes unidas, para a maior obra de engenharia já vista até então. E o resultado valia a pena. Depois de décadas de pesquisa e trabalho furo, finalmente conseguimos o que tanto desejávamos: uma abertura no tecido espaço-tempo. O equipamento demandava uma quantidade enorme de energia, só poderia ser aberto por alguns segundos. E só um dos nossos poderia passar, uma única vez. Era o preço a ser pago.

Eu fui o escolhido, já que possuía as memórias de um de seus líderes. Atravessei aquela passagem e, devo reconhecer, estava amedrontado. Havia uma grande chance de aquilo tudo falhar. Eu não sabia se chegaria ao outro lado, mas cheguei. Estava vivo. Cheguei centenas de anos antes do que era esperado, seria preciso esperar um pouco mais, mas valeria a pena. Aquela viagem era a última chance de nossa espécie, e eu precisava seguir o plano à risca.

Anos e anos depois, e ali estava eu. Quando voltei para aquela noite chuvosa, sabia exatamente o que fazer. Eu já havia matado minha vítima uma vez, no futuro, já havia roubado suas lembranças, e sabia onde ele estaria, por isso me escondi, no escuro, na passagem estreita sob o viaduto.

E ali estava ele. Era um homem incrivelmente comum: nem alto nem baixo, nem gordo nem magro, nem feio nem bonito, nem pobre nem rico. Nosso encontro foi engraçado. O homenzinho seguia seu caminho tranquilamente, assobiando, feliz em sua mediocridade. Um ser entre tantos que, como a maioria deles, por alguma razão difícil de decifrar, achava-se especial.

Ele mergulhou nas sombras do viaduto e se aproximou. Eu me revelei: ergui-me na escuridão lentamente, até ficar muito maior do que ele. Era minha verdadeira forma. O homenzinho gritou, tremeu, invocou suas divindades. Pensou que eu era um demônio. O que esperar de mentes tão primitivas? Quando já havia perdido a voz, o miserável tentou fugir. Obviamente, mal deu dois passos. Eu o cerquei. Então, ele tentou lutar e me acertou com aquelas mãozinhas inofensivas. Quando percebeu que não havia escapatória, tentou implorar, tentou chorar.

Eu o agarrei, o arremessei, o rasguei, mordi aquela carne fresca. O gosto era bom, apesar de não matar a fome. Ele se debateu, se contorceu, se defendeu o quanto pode. Não desistia de sua vida insignificante. Eu o esganei até a morte, depois arranquei seus olhos e enfiei minha língua bem fundo em sua cabeça, suguei o fluido de seu cérebro, roubei tudo o que havia ali. Não posso dizer que foi prazeroso. Era um ser miserável e arrogante, um imbecil. Por fim, eu ainda devorei seu rosto e seus dedos para que ele não fosse identificado. Ficaria estranho se um cadáver fosse visto perambulando pela cidade. Ele agora não era ninguém, apenas um corpo sem rosto, roupas ou identidade, debaixo de um viaduto qualquer. E eu era ele.

Mas a pior parte ainda estava por vir. Encolher um corpo tão grande até uma forma tão pequena é doloroso demais, uma dor impossível de descrever. Por sorte ninguém me ouviu. Era difícil ouvir algo ali, debaixo de todo aquele barulho, de todos aqueles carros e caminhões. E, finalmente, eu tinha minha nova forma. Meu novo corpo estava muito quente, levantara uma quantidade enorme de vapor, e eu estava realmente exausto, por isso descansei ali por algumas horas. Depois de tudo, vesti as roupas de minha vítima e parti.

Vivi em minha nova casa por muitos e muitos anos. Minha nova esposa era esperta para a espécie, mas não desconfiou de mim. Era uma pessoa muito melhor do que o vermezinho do marido, mas estava sempre ocupada demais, quase não parava em casa, e passou dez longos anos a meu lado sem nem ao menos perceber. Estava grávida antes de eu substituir o marido, e teve um filho que eu, contrariado, ajudei a criar, mesmo lutando diariamente contra a vontade de devorá-lo.

 

O homenzinho que eu substituíra não parecia grande coisa, nem mesmo para sua espécie tão primitiva, mas, no futuro, seria um de nossos maiores inimigos. Na realidade que estamos apagando, sua esposa foi substituída. Havia acabado de engravidar quando foi morta. A substituta viveu por dez anos com minha vítima, debaixo do mesmo teto. Era minha companheira, em meu velho planeta, e ficou prenha de um filho meu. Depois de curtos dez anos de gestação, nosso filhote nasceu. Quando minha vítima descobriu que a esposa havia sido substituída, quase enlouqueceu.

Na realidade que já não existe, poucos dias antes de descobrir a identidade da substituta, minha vítima foi interceptada por um homem desconhecido, que o alertou sobre nossa existência. O homem em questão seria um dos principais líderes da guerra que estava por vir, conhecia bem nossa espécie, tudo graças a um incidente com sua filhote. Uma das nossas, que havia substituído sua esposa, acabou devorando a criança sem querer, chamando muita atenção. Isso acontece com mais frequência do que alguém poderia imaginar. É algo que tentamos evitar ao máximo, mas temos problemas sérios com alimento. Na nova realidade, que ainda estamos construindo, o homem não é mais um problema: nós tratamos de enriquecer o miserável até a ganância cegá-lo. Ele nem mesmo percebeu quando a esposa foi substituída.

Outra inimiga importante de nossa espécie, uma médica, conheceu minha vítima quando ele aguardava julgamento por supostamente ter matado a esposa e o filho. Ela seria a grande idealizadora (não necessariamente a inventora) da arma biológica que quase levaria nossa espécie à extinção, no futuro que estamos apagando. No futuro, a miserável seria a responsável pela primeira prova científica da nossa existência. Graças a ela, boa parte dos governos humanos nos descobriram e nos atacaram com fúria. Na realidade que estamos construindo, nós matamos a enxerida antes que ela pudesse criar qualquer problema. Ela havia escapado de nós, da primeira vez, depois de trombar com minha vítima, na frente de sua casa, sem que conseguimos identificá-la. Da segunda vez, ela não conseguiu resistir. Nós agora conhecíamos sua identidade, seu rosto, e finalmente a interceptamos e a matamos. Eu mesmo tratei de lançar a arma sobre seu cadáver, para dissimular sua morte.

 

Faltava colocar em prática a última parte do plano: eu precisava morrer, precisava trazer de volta o homem que havia matado. Sua personalidade, suas lembranças e até seu temperamento ainda estavam dentro de mim. Em forma humana, fica mais fácil entender a mentira, a dissimulação, e é a única maneira de atrair a confiança dos que nos conhecem. Nossa espécie desenvolveu uma nova tecnologia, que nos permitia entrar espontaneamente em um estado profundo de amnésia. Quando isso acontece, as lembranças e a personalidade de nossas vítimas emergem com força. É algo difícil e arriscado. Muitos dos que tentaram isso acabam enlouquecendo e não conseguiram mais voltar. Mas eu estava disposto a seguir o plano.

E assim aconteceu. Eu apaguei, conscientemente, meu cérebro, deixei o homenzinho me invadir. Foi doloroso. Ter uma consciência tão retrógrada e tão simplória em sua cabeça não é algo agradável. Além disso, é confuso, ainda mais quando você acaba reassumindo a personalidade de alguém que já matou duas vezes. Quando o homenzinho emergiu, sua mente, perdida entre duas linhas temporais e duas histórias ligeiramente semelhantes, acabou aglutinando os dois planos em um, criando uma única realidade confusa, para não dizer impossível. Agora que retornei, porém, tudo parece claro: as visões duplicadas, os eventos cronologicamente confusos, as lembranças que não pareciam minhas, tudo esclarecido.

O mais engraçado: eu passei apenas dois dias dia na mente de minha vítima antes de ser preso, uma verdadeira tortura, e quase enlouqueci de verdade. Estava alucinado. O homenzinho refez todos os passos que havia feito da primeira vez. Nós já contávamos com isso. Em um ataque de fúria, ele acabou atirando em sua fêmea e em seu filhote humanos, repetindo o que havia feito da primeira vez, com os nossos.

 

Mas tudo fazia parte do plano. Eu precisava voltar ao mesmo manicômio, na mesma época. Da primeira vez, minha vítima chegou a enlouquecer de verdade, por algum tempo. Da segunda vez, meus irmãos arranjaram um bom advogado para garantir que eu acabasse internado. O motivo é fácil de entender: na realidade que estamos tentando mudar, minha vítima foi contatada pelo líder da futura guerra neste hospital psiquiátrico. Apenas uma carta. Nós só conhecíamos seu codinome: "J". Nunca vimos seu rosto, ninguém havia visto, nem mesmo seus aliados. Mas nós sabíamos que ele estava aqui.

E quem poderia imaginar que o pilar da futura resistência humana, o primeiro a nos descobrir, o responsável por nossa quase extinção, vivia em um manicômio, fingindo ser um lunático, enquanto tramava seus planos e desenhava seus projetos. Meu companheiro de quarto, o sujeito insuportável, que vive gemendo. Ele é o líder. Nós vigiamos todos por aqui, por dez anos: acreditávamos que o líder, o famoso “J”, fosse um dos médicos, um dos enfermeiros, talvez algum dos seguranças, até mesmo alguém da cozinha. Nunca poderíamos imaginar que fosse um paciente. Muito menos um falso paciente. O homem é inteligente, temos de admitir.

 

Em algumas horas, serei reconduzido até meu quarto e exterminarei o mal pela raiz, antes mesmo que ele consiga gritar. Depois disso, pendurarei esta casca repugnante pelo pescoço e fugirei, e todos contarão a história do louco que matou o colega de confinamento e se enforcou. Ninguém saberá a verdade. Os únicos que ainda resistem estão fadados a morrer sem o seu líder. Venceremos a guerra, definitivamente. E, quando o resto de meus irmãos chegarem, num futuro muito próximo, não precisaremos mais nos esconder e aniquilaremos essa espécie medíocre definitivamente.

Agora, eu preciso esconder esta carta e voltar a meu quarto. Não, eu não preciso esconder esta carta. Ou preciso? Por que eu estou escrevendo tudo isso, para início de conversa? Eu não deveria fazer algo assim. O resquício confuso da mente confusa daquela criatura confusa ainda me confunde. Eu ainda estou terminando de expulsá-lo, ainda não consegui de todo, mas em breve eu o expurgarei definitivamente de minha mente. Agora, preciso esconder esta carta. Ou será que preciso destruí-la? São folhas demais. Ele... eu... ele... Já não sei ao certo. Mas não importa mais. Está acabado!

Nós vencemos. Eles perderam.

 

Eles...

 

FIM!

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