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Sexta Parte

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Capítulo 39

 

David Wasser caminhava pelo corredor comprido, úmido e mal-iluminado do subsolo do hospital, onde também ficava o centro de análises forenses da cidade. Encontrou a legista na sala de testes, uma espécie de laboratório cheio de instrumentos estranhos que pareciam muito caros. Ela parecia concentrada, rabiscando algo em uma prancheta e observando um pequeno microscópio de tempos em tempos.

 Alguns diriam que a legista era uma mulher de parar o trânsito. Wasser nunca gostara muito daquele tipo metáfora, mas tinha de reconhecer que a garota era bastante atraente. Ficava ainda mais com o avental branco grudado no corpo firme e as panturrilhas torneadas e lisas saindo do vestido escuro. Ela não o havia percebido. Na verdade, ela apenas fingira não tê-lo visto, ele percebeu. Talvez ainda estivesse zangada com a pequena discussão que haviam começado pouco antes, talvez estivesse apenas tentando evitar problemas. Os problemas costumavam segui-lo, e não era difícil perceber.

–Olá! Posso entrar?

–À vontade! –disse ela.  –O que posso fazer por você, detetive?

–Queria pedir um favor.

–Desde que não sejam mais corpos.

–Não. Por enquanto.

 Ele sorriu. Ela não achou a menor graça. Não depois de todas aquelas mortes.  Wasser prosseguiu. 

 

–Você tem acesso ao laudo da autópsia do pai de William, Jonathan Glander? 

A legista o observou com certa dose de vitória nos olhos.

–O que foi? –perguntou Wasser.

–Eu sabia que você ia pedir isso.

–E como sabia?

A médica retirou uma pasta branca de uma das gavetas e a estendeu. A pasta mudou de mãos.

–As cruzes, elas ainda estão incomodando você, não é?

–Exato.

–Você acredita que quem está enterrando as mulheres não é a mesma pessoa que as está matando. Willian Glander não é um indivíduo muito socializável, não faz o tipo que tem cúmplices. E aparente é ele quem escolhe as vítimas. Então você pensou: e se o pai ainda estiver vivo?

–Há alguma chance?

–Nenhuma.

Wasser abriu a pasta e observou as fotos de um esqueleto carbonizado. Os ossos do homem quase se transformaram em cinzas.

–Os legistas da época conseguiram identificar a arcada com isso? –perguntou Wasser.

–Parcialmente.

–Então, há uma chance do esqueleto não ser de Jonathan Glander?

–Nenhuma.

–Por que tanta certeza?

A legista apanhou novamente a pasta, escolheu uma das fotos e a estendeu a Wasser. Ele a segurou sem entender muito bem o que a médica queria mostrar.

–Veja isso! –disse ela, indicando uma pequena fissura entre dois dentes da caveira carbonizada.

–O que é isso?

–Jonathan Glander nasceu com um problema de má-formação congênita chamado de síndrome da fissura lábio-palatal.

–Lábio leporino. –completou Wasser.

–Exato.

–Mas no retrato na casa não havia cicatriz alguma.

–O problema em Jonathan Glander era pesado, mas não chegou a afetar os lábios, apenas a arcada e o palato. A má-formação varia de indivíduo para indivíduo. 

–Essa marca no osso é muito pequena. Não poderia ser outra coisa? Do fogo, por exemplo, ou uma pancada talvez.

–Isso, talvez. Mas isto... –a médica escolheu outra fotografia e apontou para algo nela. –Isto não.

Wasser demorou para perceber o que era aquilo. Tratava-se da parte de baixo do crânio, sem a mandíbula e metade dos dentes. Ficava difícil perceber de imediato, mas, sim, era fácil identificar a fissura gravada fundo no osso. Era uma marca e tanto.

O policial ainda não parecia convencido, por alguma razão. A médica estendeu outra imagem.

–Essa é a imagem de um raio-x do crânio de Jonathan Glander, tirado quando ele ainda era só uma criança. O raio-x foi tirado para que os médicos pudessem tentar uma cirurgia. Parece que nenhum procedimento médico foi possível com a tecnologia da época, e ele continuou com o problema. Eu encontrei os exames e os demais arquivos médicos de Jonathan Glander aqui mesmo, no hospital. Parece que a família Glander vive na cidade há oito gerações. Agora, compare as marcas da fissura palatal do raio-x com as marcas do crânio carbonizado! Vai entender porque os legistas concluíram que o esqueleto era do pai de William.

Wasser comparou as duas imagens, colocando o raio-x sobre a fotografia do crânio carbonizado. A semelhança era gritante e inegável. A chance de haver outra pessoa com o mesmo problema por perto já seria pequena, mas a chance de encontrar alguém com exatamente a mesma marca no palato causada pelo mesmo tipo de deficiência era absolutamente nula. Ele seria capaz de apostar que o pai de William Glander estava vivo, mas pelo visto estava errado.

Wasser suspirou, desanimado.

–É ele. É Jonathan Glander.

–Sim, é ele. –afirmou a legista. –Os legistas da época estavam certos. Sinto muito!

Não, ela não sentia, em parte porque a ideia de um segundo assassino a apavorava, em parte porque gostava de ter razão.

–É que eu tenho um pressentimento de que Jonathan Glander era um cara bem ruim. –afirmou Wasser.

–Eu concordo.

–Verdade? Por quê?

A legista estendeu outra pasta. Wasser a abriu e examinou as folhas amareladas.

–O histórico médico de William. Vinte e sete internações, dos cinco aos doze anos, quando saiu de casa para estudar fora. Ferimentos profundos com lâmina, queimaduras, muitos ossos quebrados e até...

–Mordidas de cães...

–Exato! Ou William Glander era um menino terrivelmente sapeca, ou alguém o espancava e o torturava, com certa frequência, eu diria.

–O pai.

–A filha e a esposa também tinham um histórico médico de assustar. Jonathan Glander era um psicopata sádico. E você sabe o que dizem sobre a psicopatia.

–Genética.

–A maçã nunca cai muito longe da árvore. –concluiu a médica.

Wasser fungou descontente. A médica estava certa, ele sabia, mas apenas em parte. No que se referia aos fatos em si, talvez. Mas havia culpa naquela casa, naquele milharal, ele tinha certeza. Mas do que isso, ele pode senti-la, e era verdadeiramente muito forte. Psicopatas sádicos não sentem remorso. William Glander não se encaixava no perfil que ele havia investigado até agora. Tudo estava confuso demais.

 

 

Capítulo 40

 

A viatura policial despencou do paredão e mergulhou nas águas escuras do rio. Em questão de segundos desaparecia por completo. Ela e o corpo do velho policial no porta-malas. A água ainda borbulhou por alguns segundos, mas em pouco tempo nada na solidão da paisagem indicava o que havia acabado de acontecer. A caminhonete vermelha seguiu seu caminho de volta.

 

William Glander estava longe de casa. Atravessara toda a cidade para se livrar do carro de polícia, mas não imaginava que seria tão difícil retornar. As coisas estavam tensas. Era possível ouvir meia dúzia de viaturas, não muito longe dali. Ele reduziu a velocidade. Não queria chamar muita atenção. O centro da cidade estava repleto de policiais fardados. Quando percebeu que acabaria cercado, ele tentou uma rota alternativa, mas não se sentiu mais seguro que antes. Por todos os lados, carros de polícia com suas sirenes cintilantes. Algo dera errado. Eles o haviam descoberto.

–Merda!... Merda!... –gritou ele, esmurrando o volante do carro, e se conteve a muito custo.

Mais do que nunca, era necessário muito cuidado. Ele passou a dirigir com mais atenção. Passou por uma rua estreita para desviar do movimento. Mesmo assim, uma viatura quase o encontrou. Foi preciso cortar à direita muito rapidamente. Moradores da cidade espiavam o movimento das viaturas. Estavam curiosos. Mais à frente, a polícia montara um bloqueio. Ele encostou o carro e fez o retorno sutilmente quando os policiais pararam um caminhão vermelho. Então era isso: eles estavam procurando pela caminhonete. Era preciso se livrar dela.

 

Novamente uma guinada repentina para escapar da visão de um policial que conversava com moradores. Em seu carro, de tocaia pela cidade há mais tempo que os policiais, Marcos Hasse acompanhava o movimento das viaturas. Foi ele o primeiro a perceber a caminhonete. Seus punhos se fecharam sobre o volante com tanta força que os nós de seus dedos estalaram. Ele ligou o motor e partiu.

 

A caminhonete se desviava dos policiais com considerável facilidade. Era mais fácil segui-la com um carro comum. O sujeito ainda acelerou por alguns quilômetros e conseguiu se ocultar de outra viatura, mas a caminhonete foi identificada por um homem, que avisou os policiais. Em meio minuto, todas as sirenes se alvoroçaram. O homem abandonou o veículo e partiu a pé.

De seu carro, Marcos Hasse viu o sujeito alto de cabelos compridos saltar da caminhonete e o seguiu. Quando se aproximou um pouco, conseguiu reconhecê-lo: era certamente o mecânico estranho que trabalhava para o velho Otto. A polícia estava prestes a interceptá-lo, mas o sujeito rastejou por baixo de uma cerca viva e pulou um muro para escapar. Os policiais chegaram perto outra vez, mas novamente o sujeito se esvaiu de forma muito ágil, invadiu um quintal, saltou outro muro e seguiu apressado. Era escorregadio como uma serpente. Marcos o observava sem o perder de vista. O sujeito estava quase livre. Faltava pouco para escapar do cerco. Ele se desviou de mais um policial sem dificuldade, cortou pelo meio de um matagal e seguiu em frente. Marcos saltou do carro, apanhou um pedaço de ferro em uma caçamba de lixo e apressou o passo para cercá-lo. O sujeito saltou outro muro e deslizou por entre duas casas para despistar o último policial. Só faltava uma cerca, que ele saltou com a habilidade de um felino. Marcos esperava por ele.

A pancada atingiu uma nota estranha, seca, como o barulho de tijolos se chocando. O sujeito rodopiou como uma folha ao vento e desabou.

–Morra! –gritou Marcos, enquanto batia uma segunda vez, e mais uma, e outra.

Cada gemido de dor soava acompanhado do ruído característico de algo se partindo. Marcos estava alucinado. Seus olhos faiscavam. Os policiais mal conseguiram contê-lo. Em sua ferocidade, ele chegou a atacar alguns deles, mas foi contido e quase teve o braço quebrado. Carlos Dias chegou ao local poucos segundos depois.

–Precisamos dele vivo! –berrou o delegado. –Outra garota desapareceu.

 

–O que? –perguntou Marcos.

 

–Ele pegou outra garota. Precisamos dele vivo.

 

–Ela vai morrer! –sussurrou o sujeito, alucinado, com os dentes sujos de sangue. Era mais um monólogo que um diálogo, como se ele estivesse recitando a fala de outra pessoa. –Ela é o sacrifício pelo pecado! Seu sangue será aspergido!

 

Foi a vez de Carlos Dias bater. Um golpe forte, com os nós dos dedos, que fez o sujeito apagar instantaneamente.

 

–Levem esse maluco daqui!

 

Voltando-se para Marcos, ele completou:

 

–E você, o que acha que está fazendo?

 

–Pegando o homem que vocês estavam deixando escapar.

 

–Nós temos a cidade toda sob vigilância. Temos policiais camuflados em todas as saídas. Ele poderia nos levar até a garota. Ela pode estar viva. E eu tenho problemas demais para me preocupar com você. Da próxima vez, levo você junto.

Capítulo 41

O sangue espirrou, respingou a parede. William Glander gemeu, mas não parecia abatido. Estava algemado a uma grande mesa de metal fosco.

–Vou perguntar mais uma vez. –afirmou Carlos dias, que já havia perdido a paciências há uns quinze minutos. –Onde está a garota?

Aquilo talvez fosse choro, talvez uma risada, talvez ambos. O que saiu da boca do prisioneiro foi um som bizarro, insano. Seus olhos se encheram de um brilho elétrico difícil de definir. Pelo vidro da sala de interrogatório, Wasser e Melissa assistiram a cena.

–O sujeito é doente. –afirmou a médica. –Não dá para fingir uma cara dessas. Parece que você tinha razão, afinal.

 

O delegado deu alguns passos pela sala, contrafeito, mas voltou a se posicionar exatamente no mesmo lugar, bem ao lado da mesa.

 

–É preciso! –disse William Glander, e parecia convicto. –Ela precisa pagar pelo pecado. Todas precisam.

 

–Isabela Hasse... Ela também precisava pagar?

 

–Isabela? –perguntou o prisioneiro, com tristeza. –Ela era bonita. Ela foi bondosa comigo.

 

–Ela era minha afilhada. Você a matou! Você a cortou em pedaços!

 

–Foi preciso! O sangue precisa ser aspergido. Só assim haverá libertação.

 

–Não vou deixar que faça isso com mais uma mulher. Diga onde está Amanda Greene!

 

–Sobre o altar. Ela é a oferenda, o sacrifício agradável.

 

Carlos Dias não se controlou e bateu outra vez. A cabeça de William Glander quase foi arrancada do corpo, mas ele novamente não pareceu sentir o golpe e voltou a exibir o sorriso alucinado, apesar do sangue que escorria do nariz e da boca. Era como bater em um daqueles bonecos esquisitos de borracha que nunca caem. Algo absolutamente inútil.

–Está acabado! –concluiu o prisioneiro.

 

O delegado não podia acreditar que alguém fosse tão resistente à dor. Só para se assegurar, puxou o maço de cigarros do bolso e acendeu um deles. Por fim, deu uma tragada profunda e atiçou a chama vermelha com um sopro leve.

 

–Ele vai fumar agora? –perguntou a legista, confusa.

Wasser olhou para a garota e quase sorriu com a ingenuidade. Bateu no vidro três vezes para interromper a tortura. Carlos Dias aparentemente não gostou da intromissão, mas mesmo assim caminhou até a sala ao lado.

 

–O que foi? –perguntou ele, assim que passou pela porta. –Estou prestes a obter alguma informação.

 

–Isso não vai adiantar. –respondeu Wasser. –Ele está alucinado, fora da realidade. Tudo isso só vai alimentar a paranoia.

 

–Temos uma garota que já pode estar morta, e quer que eu o trate com carinho?

 

–Ele está acostumado com a dor. Passou por coisas piores do que isso quando era só um garoto.

 

–Isso é verdade? –perguntou o delegado, à legista.

–Sim, é verdade. Coisas muito piores. Os exames médicos indicam isso.

 

–Você só está perdendo seu tempo aí. –completou Wasser.

 

–E você tem alguma ideia melhor? –perguntou Carlos Dias, fuzilando o policial com olhos.

 

–Na verdade... –respondeu Wasser, remoendo algo em sua mente –Acho que tenho sim.

 

Ele partiu. O delegado suspirou e ergueu os olhos para a legista.

 

–E você, o que acha?

 

–Eu? Eu nem devia estar aqui. –respondeu a médica. –Tenho corpos para analisar. Foi você que me chamou. Não sei o que quer que eu diga.

 

–Diga o que acha dele!

 

–Eu não sou psiquiatra. O psiquiatra já foi convocado.

 

–Ele vai chegar amanhã, pela manhã. –respondeu o delegado. –Acha que temos até amanhã? Por favor, apenas diga o que vê!

 

A médica suspirou e se deu por vencida.

 

–Wasser já foi um perfilador. Acho que ele tem razão. As mortes... O perfil parecia indicar um assassino sádico, sociopata, mas olhe para esse cara! Ele é completamente maluco. Encontramos quase duzentas embalagens vazias de antipsicóticos naquela casa, mas, se ele tomou algum, não fizeram efeito. Ele deveria estar concentrado, estático como um robô, mas não é isso que parece. Interrogá-lo pode não arrancar nada. E, mesmo que ele diga algo, não poderíamos confiar que seja verdade.

 

Carlos Dias se sentou. Parecia repentinamente calmo, também repentinamente cansado.

 

–Tudo bem! –disse ele, desanimado. –Vá com Wasser e tente ajudá-lo! Eu vou trancar esse sujeito e vou ajudar nas buscas. Que Deus nos ajude!

A médica estava prestes a deixar a sala, mas levou um susto. O rosto de William Glander estava grudado no vidro.

 

–Salvem-na! –implorou ele, num devaneio de lucidez. –Salvem a garota, por favor!

 

–Como o desgraçado soltou as algemas? –perguntou o delegado.

 

–Eu não sou capaz, não posso lutar contra ele! Não mais...

 

Em um movimento repentino e muito veloz, William Glander empurrou a mesa de metal para travar a porta.

 

–O que ele está fazendo? –pergunto a médica. –Ele acha que vai fugir?

 

–Não. –respondeu o delegado, compreendendo, a muito custo, o que estava acontecendo. –Ele não está fugindo.

 

William Glander puxou uma cadeira, arrancou o fio do ventilador de teto e atou-o a uma das vigas da sala em meio minuto.

 

–Não! –sussurrou a médica. –Ele...?

 

O prisioneiro fez um pequeno laço na ponta que sobrara do fio. Carlos Dias atirou uma cadeira contra o vidro, mas ele nem trincou. Era à prova de balas. O delegado nem se lembrava do fato.

 

–Pela frente! Vamos!

 

Os dois únicos policiais na delegacia tentaram ajudar a destravar a porta. Foi em vão. Pelo vidro, a legista contemplou a face de alívio do suspeito quando chutou a cadeira e simplesmente despencou. O corpo pendurado agora se debatia, mas os lábios pareciam sorrir. Quando os homens finalmente conseguiram vencer a barreira, William Glander já estava imóvel. E tudo não havia durado mais de dois minutos.

 

Os policiais cortaram o fio. A legista ainda correu para a sala de interrogatório, sentou sobre o corpo do prisioneiro e tentou reanimá-lo. A massagem cardíaca e a respiração boca a boca se estenderam por vários minutos.

 

–Vamos, William! –sussurrou a médica, com tristeza, enquanto massageava o peito do prisioneiro. Estava acostumada com mortos, mas ver alguém morrendo em suas mãos era algo completamente diferente. 

 

–Vamos!... Não faça isso!...

 

Houve um último esforço da médica, mas tudo foi em vão. O coração do prisioneiro havia parado.

 

–Ele está morto? –perguntou o delegado, bastante assustado.

 

–O que acha?. –respondeu a legista.

 

A face de William Glander já havia ganhado um tom pálido, meio arroxeado. A pele do rosto estava contorcida, e a língua agarrava-se ao céu da boca. Lembrava um daqueles peixes recém-pescados na mesa de uma feira livre. Simplesmente horrível.

 

–Eu não deveria ter batido nele! –lamentou-se o delegado.

 

–Não foi por isso que ele fez isso, Carlos. –afirmou a médica.

 

–Toda uma vida de sofrimento e tortura. –Era a voz de Wasser. Ele estava ali, em um dos cantos, o delegado não sabia há quanto tempo, e parecia enxergar os sentimentos de William como se fossem uma névoa pairando sobre o corpo. –O pai o torturava, mesmo depois de morto.

 –Ele disse "salvem-na". –lembrou a médica.

 

–Pelo menos agora sabemos que Amanda ainda está viva. –afirmou o delegado. Voltando-se ao grupo de policiais assustados, concluiu. –Precisamos correr... Todos ao trabalho! A garota está viva! Todos sabem o que precisam fazer! Achem-na!

Capítulo 42

 

Wasser correu para a sala deserta da delegacia, apanhou o telefone e discou. No terceiro toque, uma voz metálica de mulher atendeu à ligação.

–Redação... Em que poço ajudá-lo?

–Olá! Eu gostaria de falar com Caio Eing, por favor!

–O diretor está ocupado agora. Quer que eu anote seu nome e telefone?

–Pode, por favor, dizer a ele que David Wasser está na linha. É uma questão de vida ou morte.

–Só um momento, senhor.

Wasser aguardou apenas alguns segundos. A voz do repórter surgiu em seguida:

–Olá, investigador. Definitivamente, eu não esperava uma ligação sua.

–Preciso de ajuda e não sei a quem recorrer.

–Se eu puder ajudar. Do que se trata?

–Estou investigando o caso da garota assassinada. Descobrimos outros corpos. Mais mulheres.

–Isso é horrível!

–O pior de tudo é que outra garota foi raptada. A garota ainda pode estar viva. É uma chance pequena, mas existe. Estamos sem tempo.

–Tudo bem. Mas eu ainda não entendi por que precisa de mim.

–Estou procurando pelo crime zero.

–A primeira vítima.

–Exato. Acho que isso pode ajudar a encontrar algo sobre o assassino. É um nó bem emaranhado.

–Tudo bem, mas onde eu entro nisso tudo?

–Seu jornal é antigo.

–Trinta anos.

–Vocês mantêm registros em algum lugar: exemplares velhos, matérias publicadas e não publicadas?

–Claro que sim. Temos um arquivo completo, tudo que passou por aqui desde o começo. Tudo foi digitalizado há algum tempo.

–Preciso que me ajude a encontrar o primeiro assassinato. Deve ter ocorrido há bem mais de dez anos.

–Mulheres assassinadas? É mais comum do que você imagina. Deve haver umas cem matérias dessas. Eu nem saberia por onde começar.

–Um crime religioso. Creio que a origem desses crimes é religiosa. Procure por um crime que tenha acontecido há cerca de quinze anos, talvez um pouco mais, em um mosteiro ou algo do tipo!

–Fica mais fácil assim. Mas como chegou a essa conclusão?

–É difícil explicar.

–Tudo bem, deixa pra lá. Eu vou colocar todo o meu pessoal na pesquisa. Retorno em alguns minutos.

O repórter desligou. Wasser aguardou com ansiedade. Os ponteiros do relógio de parede da delegacia pareciam não se mover. Cerca de meia hora depois o telefone tocou.

–Você estava certo. Um convento, em uma cidadezinha no pé da serra, a noventa quilômetros de onde você está. Há cerca de dezoito anos, uma freira de vinte e dois anos foi assassinada e esquartejada. Os pedaços foram empilhados em um tipo de pirâmide e largados no celeiro do convento.

 

As fotos da cena do crime de Isabela surgiram na mente de Wasser. "Pedaços empilhados em uma espécie de pirâmide". Era igual. O repórter continuou:

–O nome da garota era Elisa Maia. Vou enviar a matéria e o endereço por fax para o seu número. Tomara que ajude.

–Certo. Obrigado! Fico devendo essa.

O papel emergiu da impressora minutos depois. Pouco mais de meia página fora dedicada ao caso na época. Na matéria do jornal, a notícia sobre o assassinato surgia bem acima de uma fotografia em preto e branco da cena do crime. Acima de tudo, uma foto da mulher morta. Se Wasser tinha alguma dúvida sobre a ligação entre o antigo caso e os atuais, ela desapareceu depois de ver a fotografia da freira. Sempre a mesma semelhança física.

 

David Wasser correu para seu carro e ligou o motor. Estava prestes a acelerar quando a legista invadiu o automóvel.

–O que está fazendo? –perguntou Wasser.

–Eu vou com você.

–Definitivamente, não. Eu trabalho sozinho.

–Ordens do chefe. Então, por favor, acelere.

–Carlos Dias não é meu chefe.

–Teoricamente, também não é o meu, mas...

–Saia!

–Por favor, só me deixe tentar ajudar a garota. –pediu a médica. –Estou farta de corpos. Quero ajudar alguém que não esteja morto.

O policial suspirou. Lembrou-se da mulher massageando o tronco de William Glander. Não havia como negar.

–Tudo bem. –concordou ele, antes de acelerar. –Só não atrapalhe. E não reclame depois.

 

Na delegacia, Carlos Dias deu suas últimas instruções à secretária e partiu para se juntar a equipe de busca. Havia muito trabalho a ser feito. A secretária ficou sozinha no prédio, com o corpo do assassino jogado em uma das celas, enrolado em um lençol. Estava apavorada, mas teve vergonha de dizer ao delegado. Afinal, o homem estava morto. O que mais poderia acontecer?

 

Wasser demorou vinte minutos para sair da cidade. Dez minutos depois, estava na rodovia. A partir dali, o caminho era mais rápido. Ele colou o acelerador no cento e vinte por um bom tempo e seguiu viagem. O carro velho surpreendeu a legista. Era uma geringonça incrivelmente veloz. Bebia muita gasolina, era verdade, mas a potência impressionava.

 

Eles seguiam muito rápido, apesar da enorme quantidade de veículos. Minutos depois, o carro virou à direita em um trevo e mergulhou em uma estrada de chão, mesmo assim conseguiu manter uma boa velocidade. O veículo agora parecia um míssil, rasgando a solidão da estrada deserta, deixando atrás de si um rastro de poeira e muito barulho. Dos dois lados da estrada, quilômetros e quilômetros de pastagens, pequenas matas e banhados esporádicos. Muitas árvores coloridas se espalhavam pelo cenário. Era bonito, apesar da solidão.

 

–Quando eu era criança, esses pastos costumavam ter muitas ovelhas. –comentou a legista, observando o cenário verde distraidamente. –Eram animaizinhos muito graciosos. Meu pai me levava para passear pelas fazendas, às vezes andávamos de pedalinho em algum lago.

 

–E o que exatamente aconteceu com elas, as ovelhas?

 

–A peste! Veio de repente. Os bichinhos tremiam, um tipo violento de convulsão, e vomitavam muito sangue. Era triste de ver. Depois de dias, elas estavam mortas.

 

–O que era essa peste?

 

–Isso é o mais estranho. Não era nenhuma doença conhecida. Vírus, bactérias, fungos... Os veterinários tentaram de tudo na época, mas os rebanhos foram dizimados em pouco mais de um ano. Muita gente ficou falida. Então houve uma migração em massa. Os campos ficaram desertos. Ninguém mais se arriscou a criar um único animal por estas bandas. Os mais antigos disseram que era uma maldição, uma espécie de praga bíblica. Talvez estivessem certos.

 

–Acredite, no dia em que alguma praga bíblica cair sobre a terra, não será sobre pobres animais indefesos. Há muita carne humana por aí para ser consumida pelo fogo.

 

A legista olhou para o policial, curiosa.

–É um homem religioso, Sr. Wasser?

 

David Wasser balançou a cabeça, os olhos concentrados no horizonte. O pico de uma montanha muito alta surgia ao longe.

 

–Não. Só passei tempo demais na mente de pessoas muito ruins. Há muito mal no mundo. Acredite, realmente muito mal.

 

A médica o observou por algum tempo.

 

–Então, qual é a sua história? –perguntou ela.

 

–Não tenho uma história.

 

–Todos têm uma história.

 

–Tudo bem, então qual é a “sua” história?

 

–Me formei em medicina há oito anos. Não gostava de bandidos, então uma coisa levou a outra.

 

–História curta. –afirmou Wasser. –Então, qual é a história de verdade?

 

A médica ficou mais séria de repente.

 

–Eu sempre quis trabalhar com cirurgia plástica, sabe? Desde antes de entrar para a faculdade. Quando comecei o curso, estava decidida.

 

–Dinheiro. –arriscou Wasser.

 

–Exatamente. Minha maior motivação sempre foi ser rica, andar de jatinho, iate, morar em coberturas com piscinas. Coisas do tipo.

 

–E por que mudou de ideia?

 

–Quando eu estava no último ano da faculdade, certa manhã, uma garotinha apareceu morta em uma lixeira, bem ao lado do campus. Devia ter uns três anos, no máximo. Estava embrulhada em um saco plástico azul, um saco de lixo. Ela foi enforcada. Dava para ver as marcas dos dedos no pescoço. A polícia apareceu rápido, isolou a área. Durante algum tempo, houve uma grande comoção: indignação, pessoas chorando, luto. A perícia demorou para chegar porque estavam presos em outra cena de crime. Então aconteceu...

 

–Todos esqueceram dela. –arriscou Wasser.

 

–Levou apenas algumas horas. No começo da tarde, a vida já havia voltado ao normal. As pessoas passavam em frente à lixeira sem se importar mais, conversando, brincando. Era como se a menina não estivesse mais ali. Então eu percebi que ninguém se importava de verdade. Mas eu fiquei ali, ao lado daquela garotinha, até a perícia aparecer. Eu não a abandonei nem por um minuto. Aquilo mudou a minha vida para sempre. No dia seguinte, eu não tive mais dúvidas e me alistei para o concurso da polícia.

 

Houve um momento de silêncio. Wasser ouvira tudo atentamente.

 

–Eu imaginava algo do tipo. –afirmou ele.

–Por quê? –perguntou a médica.

 

–Conheci uma grande quantidade de legistas ao longo de todos esses anos. A maioria opta pela profissão por não ter muito talento com o bisturi. Outros optam por ela para se livrar das responsabilidades ou por terem medo de lidar com os vivos. Mas você não. Você é diferente.  Eu vi você com William. Você realmente se importa.

 

–Por que eu fiquei com a sensação de que ele era mais uma vítima?

 

–Porque ele era.

 

–Acha que há outro assassino?

 

–É uma boa pergunta. A maneira como as testemunhas descreveram o assassino: metódico, inteligente, compulsivo.

 

–William era inteligente. Se analisarmos a forma como ele quase conseguiu fugir do cerco policial. Ele parecia ter um raciocínio muito rápido.

 

–Sim, é verdade. Mas as testemunhas pareciam sempre descrever um tipo estranho e muito intenso de frieza. William não era um homem frio. Eu diria que havia muita angustia nele, mas não frieza. E havia a questão física: as testemunhas descreveram o assassino como alguém alto e muito forte. William era realmente muito forte, mas... Não tão forte. Enfim, fazia quatro anos que ninguém via o assassino. Ele pode ter emagrecido, perdido músculos.

 

–Mas não há mais ninguém, há? Se houver, a garota pode estar condenada.

 

–O que você acha? –perguntou Wasser. –De verdade.

 

–O delegado interrogou o mecânico velhinho. Aparentemente, ele era o único que convivia com William na cidade. A forma como o homem descreveu William, era como uma espécie de bicho-do-mato, alguém que não deixava ninguém se aproximar, como se tivesse medo. Medo das pessoas. Não havia mais ninguém, aparentemente.

–Se houvesse outra pessoa, não seria um cúmplice, seria o mandante. Mas William era paranoico e reservado demais. Onde ele encontraria outro maníaco para explorá-lo, além do pai. A chave, eu tenho certeza, é o pai. Se o pai estivesse vivo... Aí seria diferente.

 

–Mas se ele tivesse encontrado outra pessoa, outro monstro como o pai... Essa pessoa teria facilidade para controlá-lo, não teria?

 

Wasser sentiu um arrepio na espinha. Sim, aquilo faria sentido. Mas dois maníacos daquele tipo na mesma cidade, seria uma coincidência macabra.

 

–Olhando por esse ângulo, você pode estar certa.

 

–Não quero estar... –sussurrou a legista, e se calou por alguns minutos, enquanto algo remoía sua mente. –Eu ajudei na autópsia da garota, nove meses atrás, sabia?

 

–Não, eu não sabia. –respondeu Wasser.

 

–Nunca vi nada tão horrível. Nós costuramos o corpo dela. Levamos três dias. Três dias... Parecia um quebra-cabeça. Eu não quero reclamar, mas, só uma vez, gostaria de ajudar alguém que ainda estivesse vivo.

Wasser não acreditava realmente que a garota ainda estivesse viva, mas se calou. Não queria torturar a legista. Além disso, no que dependesse do perfil dos assassinatos, das outras mortes, Amanda ainda tinha alguma chance. Mas aquilo não era uma ciência exata.

 

–Amanda... Nós vamos salvá-la, não vamos? –perguntou a médica.

 

–Estamos perto. –respondeu Wasser. –Realmente muito perto. Mas não depende apenas de nós.

 

Quando chegaram ao topo de um morro muito alto, a montanha se revelou completamente, imponente como um titã emergindo da terra. E a coisa não era apenas grandiosa, era também muito bonita.

–Lindo, não é? –perguntou a médica.

 

–Incrível. –respondeu Wasser.

Vinte minutos depois, eles já chegavam ao pé da serra, uma cadeia de montanhas compridas, largas e extremamente altas, que se estendiam por milhas e milhas. A montanha que eles avistaram da estrada era apenas a mais alta delas. Fazia frio ali embaixo, um frio profundo e denso, que tornava o ar pesado e difícil de respirar. A cidade na qual se encontravam agora era pequena, dois mil habitantes no máximo, e não tinha um único prédio. Não passava de um vilarejo, na verdade. Por todos os lados, apenas campos que se estendiam por distâncias que pareciam impossíveis e pessoas atarefadas com animais e tratores. Eles pararam em um mercadinho. Wasser saltou para pedir informação. A menina sorridente e cheia de sardinhas no caixa os orientou. Chegaram ao destino dez minutos depois.

 

O convento era uma construção de dois andares comprida e larga, cravada em um pequeno sítio, bem no início da subida da serra. À esquerda, era possível até mesmo distinguir a estrada estreita e íngreme que mergulhava na mata. O edifício em si era soberbo, como tudo por ali: um sobrado branco, aparentemente reformado há pouco tempo, alto e largo, com umas cinquenta janelas no mínimo. Sob a tinta, na fachada, era possível distinguir desenhos e esculturas em relevo de outras eras. Flores e arbustos bem aparados decoravam o jardim de entrada, e todas as janelas tinham vasos de rosas ou orquídeas, o que dava ao lugar um aspecto colorido e muito alegre.

Eles saltaram do carro. Wasser acenou para uma freira muito jovem que varria a calçada. Ela se aproximou. Ele se apresentou.

–Eu poderia, por favor, falar com a responsável?

 

–Mas é claro, policial. Só um momento.

 

A mulher se afastou, segurando o hábito negro para evitar que ele arrastasse pelo chão. A médica não pode deixar de perceber o olhar disfarçado que a garota lançara sobre o policial, como se quisesse devorá-lo com os olhos. Aparentemente havia muita solidão por ali, e poucos homens.

 

–Deixe as perguntas comigo, combinado? –perguntou Wasser.

 

–Você manda. –respondeu a médica, esfregando os braços de frio. Nem a blusa de lã nem a jaqueta que ela vestira no caminho pareciam fazer efeito naquele lugar.

 

Pouco depois, a mesma freira retornou e os convidou a entrar. Eles se acomodaram em uma sala bonita, repleta de quadros e gravuras religiosas. Tudo ali era modesto, como em uma casa de família comum, mas muito bem ajeitado. Uma velha senhora de olhos simpáticos apareceu no momento seguinte. Era magra e tinha um rosto bonito, beleza que nem mesmo as muitas rugas apagavam. Movia-se com suavidade e firmeza, mas os passos um tanto vacilantes e a as costas já bastante curvadas denunciavam a idade.

 

–Olá, sou a irmã Susana Burt, a superiora do convento. –disse a mulher, fazendo sinal para que eles se sentassem. –Em que posso ajudá-los?         

 

–Não queremos tomar muito do seu tempo, senhora. –afirmou Wasser. –Estamos aqui por causa do assassinato de uma freira vinte anos atrás.         

 

–Elisa!... –exclamou a mulher. O nome visivelmente a entristecia. –Pobre menina! Ela não merecia aquilo.         

 

–A senhora a conheceu?         

 

–Sim, muito bem. Era uma pessoa muito boa.         

 

–Sabe por que alguém a mataria?         

 

–Não, a pobre não fazia mal a uma mosca.         

 

–Ela tinha alguma ocupação, além do convento?

 

–Agora que você perguntou... Na verdade, sim. Pouco antes do assassinato, ela se formou na faculdade. Era psicóloga.         

 

–Algum paciente que fosse maluco o suficiente para matá-la?         

 

–Não sei muito bem, policial. Não conhecia muito bem as pessoas que ela atendia, mas sei que eram jovens.         

 

–Tudo bem. Só mais uma coisa: foi a senhora que encontrou o corpo.    

 

–Oh, não. Deus me poupou da visão. Infelizmente, foi uma das nossas que o achou. Irmã Cristina. Era colega de quarto de Elisa na época.

 

–Ela ainda vive aqui?

 

–Sim.

–Poderia falar com ela, se não for incômodo?

 

–Claro.

 

A madre chamou uma freira mais nova e pediu para que ela avisasse a outra. Elas eram obedientes por ali, Wasser percebeu. A hierarquia era respeitada com afinco. Lembrava quase um batalhão do exército, só que mais silencioso. O uniforme camuflado havia sido substituído pelo preto básico e as armas de fogo pelos rosários e livrinhos de reza, mas, tirando isso, a comparação era bastante adequada.

 

–Bom dia! –disse a outra mulher, assim que entrou. –Em que posso ajudar, policial.

 

Era uma freira baixinha e bastante acima do peso. Tinha um rosto bonito, traços delicados, nariz arrebitado e olhos grandes. Passava um pouco dos quarenta. Devia ter cerca de dezoito anos quando encontrou o corpo, Wasser calculou.

 

–Então, Elisa era sua colega de quarto?

 

–Sim.

 

–Notou um comportamento estranho, na época.

 

–Eu contei à polícia, na época: no dia em que foi assassinada, ela parecia bem assustada. Mas foi apenas no dia. Eu tentei arrancar o motivo, mas ela me assegurou que estava tudo bem.

 

–Madre, posso ver o lugar onde o corpo foi encontrado?

 

–Claro! Vá com eles, Cristina. Eu creio que a caminhada já é muito longa para mim.

 

–Tudo bem.

 

 

Eles caminharam por um campo verde. Tiveram de passar pela grama alta e molhada, uma caminhada difícil, mas enfim chegaram ao destino. O lugar era pouco mais que um galpão grande de madeira no meio do pasto, a quase dois quilômetros do convento.  Não havia portas, só paredes muito altas e nada mais. 

 

–Você encontrou o corpo às quatro e meia da manhã, segundo o jornal. –afirmou Wasser.

 

–Quatro e meia, em ponto.

 

–E o que estava fazendo tão longe do convento àquela hora, se não se importa que eu pergunte.

 

–Não, nem um pouco. Era meu dia de apanhar o leite. Nós tínhamos muitos animais aqui, na época. Estranho como isto tudo está deserto agora! Hoje em dia, compramos quase tudo o que precisamos no supermercado. E todos os nossos animais morreram. Na época, não havia nenhum mercado em milhas, e nós precisávamos levantar ainda mais cedo, ou passaríamos fome, literalmente. Além disso, após a peste, ninguém mais na região se atreveu a criar animais. Quase todos vivem da agricultura agora, e os poucos animais por estas bandas são animais de tração.

 

–Você se lembra de algo diferente naquele dia? Qualquer detalhe é importante.

 

–Faz muito tempo. –afirmou a mulher. –Só me lembro de uma coisa: os animais estavam alvoroçados. Muito alvoroçados. Eu entrei para conferir o que os estava assustando e vi aquilo...

A mulher apontou para um canto do celeiro.

 

–Bem ali! O corpo de Elisa estava empilhado ali. Pobrezinha!

 

Wasser caminhou até o lugar apontado. Seus olhos buscavam por algo.

 

–Acha mesmo que vai encontrar alguma coisa aqui tanto tempo depois? –perguntou a legista. –É impossível. Qualquer vestígio, e...

 

A médica se calou. Wasser parecia uma daquelas estátuas de jardim. Nem um só músculo de seu corpo se movia. Ele nem respirava, e ficou daquele jeito por um bom tempo. Até a freira, que estava mais afastada, achou aquilo esquisito.

 

–Ele está bem? –perguntou a mulher.

 

Lembranças... Algumas eram mais fortes que outras. E aquela era absurdamente forte. Ele estava de joelhos, diante do corpo dilacerado e amontoado como uma pilha de excrementos. Suas mãos tremiam. Ele chorava convulsivamente. A mulher que tanto amara, numa mescla de amor divino, fraternal e erótico, agora reduzida a uma pilha de pedaços sem vida.

 

–Por que? –gritou sua voz, uma voz de adolescente, à figura de olhos brilhantes. –Por quê?

 

Por todos os lados, cavalos, bois e ovelhas. Havia um cheiro forte de esterco, mas o cheiro do sangue quente era ainda mais forte.

 

–Porque o pecado precisa ser cortado pela raiz. –respondeu o homem. Mas não passava de um vulto. Talvez nem estivesse ali. Seria a mesma voz, indagou-se Wasser. Claro que não: um era adulto, o outro não passava de uma criança crescida. Mas eram duas vozes muito parecidas, quase idênticas. E aquele vulto permaneceu ali, parado. Aparentemente nem tocava o chão. Havia outras formas também, flutuando no vazio. Nem todas eram humanas. Era uma mente perturbada.

 

Houve um lapso de tempo. Tudo escureceu e voltou. Ele estava no mesmo lugar, mas o corpo mutilado havia desaparecido. Os animais estavam mais calmos. No lado de fora, uma noite mais clara. Ele cavaca o chão duro de terra batida com tanta força que seus dedos sangravam. Era doloroso. Algo foi colocado sob a terra, no mesmo ponto onde estivera o corpo ou muito próximo. Era algo brilhante.

 

Wasser voltou. Estava ali outra vez, na tarde clara, no meio das duas mulheres. A legista o observava com uma cara preocupada. Ele ignorou. Caminhou até um canto, apanhou uma pá velha e voltou para o mesmo lugar. Precisou de apenas três pazadas para desenterrar o que fora escondido: uma pequena caixa de madeira encapada com couro lustrado. Uma caixa que deveria ter sido bonita em outros tempos. Ele a abriu. Dentro, uma medalhinha de ouro de um santo que ele não conseguiu reconhecer.

 –Meu Deus! –exclamou a freira. –Isso era de Elisa. Como foi parar ali?

 –Ela estava com este colar, quando foi morta? –perguntou Wasser.

 –Não, ela o havia dado de presente, para um garoto, meses antes. Um de seus pacientes. Ela gostava muito do menino.

 –William Glander? –perguntou a legista, quase sem acreditar.

 –William. –respondeu a freira, assustada. –Ele mesmo. Como vocês sabem?

–Essa coisa toda me confunde cada vez mais. –afirmou Wasser, mais para si mesmo que para as mulheres. Então encarou a freira. Seus olhos vibravam. A mulher parecia mais nervosa agora. O negócio com a caixa a havia assustado de verdade. –Tudo bem: Elisa era psicóloga, não é isso?

 

–Sim. Era a área dela. Ela estava fazendo mestrado, então resolveu fazer pesquisa de campo.

 

–Ela trabalhava em muitos lugares?

 

–Não, apenas em um lugar, um mosteiro.

 

–Precisamos do endereço?

 

–Isso é fácil. –respondeu a freira. Desejava muito se afastar do policial. –É só subir a montanha.

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