
Segunda Parte

Capítulo 11
A igreja era uma construção branca, espaçosa, clássica. Bancos de cedro se estendiam em duas fileiras, formavam um corredor que ia da porta principal até o altar, onde uma infinidade de anjos e santos trocavam olhares suspeitos. A imagem de Cristo pregado na cruz parecia antiga, obra de algum artista talentoso e anônimo, esculpida em mármore, em tamanho real, ou pelo menos no que se imaginava como o tamanho real. Floristas e decoradores se amontoavam em seus últimos retoques, emaranhando pedaços de tecido a flores e flores a pedaços de tecido.
Marcos Hasse observava aquilo sem compreender. Gostava dos casamentos de antigamente, quando tudo era feito com ramos de árvores sem donos e flores arrancadas de jardins de pessoas ricas e aborrecidas. Mas tudo bem. As coisas sempre mudavam, e aquele casamento seria fantástico. Sua filha estava ao seu lado, trajando um vestido de noiva do qual ele se recordava bem. Fora o mesmo vestido que sua esposa usara em seu próprio casamento, a mãe dela antes disso. Num acerto longo e cansativo entre sua filha e sua esposa, chegou-se à decisão de que a noiva escolheria seu próprio vestido para o casamento, mas que usaria o vestido da família no ensaio. O vestido de noiva da família parecia não agradar completamente à noiva da vez, algo a ver com tecido em excesso e com o tom ligeiramente amarelado da coisa velha. O vestido verdadeiro era bem mais branco, curto e extremamente simples. Mas Isabela estava linda assim mesmo e todos ficaram imaginando como ela estaria deslumbrante na noite seguinte.
Marcos Hasse vestia um terno velho que serviria apenas para o ensaio e sapatos velhos que faziam mais barulho do que um par de ferraduras. Na extremidade oposta do corredor, em frente ao altar, o noivo aguardava, de braços dados com a mãe da noiva. Denis era órfão, não tinha irmãos ou parentes e seus melhores amigos eram o entregador de pizzas, o cara da locadora de vídeos e o cachorro vira-latas que ele adotara alguns anos antes. Por essa razão, tomara emprestada a mãe de sua futura esposa para conduzi-lo até o altar. Margaret Hasse gostava do rapaz quase como se realmente fosse sua mãe, então estava tudo resolvido.
A música começou. Música de verdade, com flautas, violinos e até um piano. Os músicos estavam vestidos com roupas comuns, ou pelo menos comuns para músicos, mas na noite seguinte todos estariam rigorosamente bem vestidos, verdadeiros fraques, um bando de pinguins sem penas enfeitando o lado direito do altar. Além de tudo, era preciso reconhecer, o som era de encher o peito.
Marcos Hasse observou sua filha. Ela estava muito feliz. Feliz como nunca ele a vira antes, feliz a ponto de saltitar de alegria se lhe dessem a oportunidade. Isabela mesclava tudo que havia de mais bonito nos pais: os cabelos encaracolados e a pele de pérola da mãe, os olhos bem desenhados e o semblante penetrante do pai. Já a pequena Caroline parecia uma miniatura magrinha da mãe, tímida e apreensiva como poucas meninas de onze anos sobre a face da terra. Aguardava em frente à irmã e usava um vestido muito parecido com o vestido que a noiva usaria no dia seguinte. Apenas a cor era diferente, um cor-de-rosa delicado.
—Eu já disse que sou muito velha para ser daminha de honra. —protestou a menina.
—Você não é minha daminha de honra, é minha dama de companhia. —retrucou a irmã mais velha.
—Mas damas de companhia andam em par.
—Eu só preciso de você. —finalizou Isabela, antes de acariciar o nariz rosado da irmã caçula. —Você não vai escapar de mim.
Marcos Hasse sorriu. Partiram de braços dados, ele e a filha, com a dama de companhia sempre três passos à frente, até alcançarem o altar. Marcos deu uma boa olhada no noivo, enfiado em seu terno surrado de ensaio de casamento. O rapaz estava muito nervoso, mesmo sendo apenas um ensaio, tão nervoso que todos podiam ouvir os ossos de seus joelhos chocalhando. Antes mesmo de Isabela se tornar a mulher linda que era agora, Marcos sempre fantasiara com um casamento à moda antiga, com um noivo que fosse a mescla entre um executivo bem-sucedido (talvez um médico) e algum ator bonitão de cinema. Nunca imaginara entregar sua filha a um sujeito franzino, baixo, magricela, que não via um emprego de verdade há tempos, que usava gírias estranhas o tempo todo e que mascava chiclete mesmo durante o ensaio do próprio casamento. Mas ali estava ele, fazendo isso e, o mais estranho, feliz por fazê-lo. Não importava se o sujeito era feio para a filha, ou se era cinco anos mais jovem que a noiva, ou bem mais baixo que ela, o importante era que Isabela o amava. A filha tinha um bom emprego em um banco, de qualquer forma, e não precisava de um marido rico para esnobá-la. Denis era um bom garoto. E, o mais importante, era completamente apaixonado por Isabela. Era impossível não gostar do rapaz, Marcos tinha de reconhecer. Os dois seriam felizes juntos, ele tinha certeza. Mesmo assim, entregou a filha para o noivo com um aperto no coração. Na noite seguinte seria definitivo, e o velho ciúme de pai falava mais alto. Mas era algo que ele teria de superar, e em muito pouco tempo. Além do mais, ver o nervosismo desconcertante do rapaz já amenizada em parte o sadismo natural de pai.
Margaret Hasse agarrou a filha e a encheu de beijos, enquanto soltava exclamações típicas de uma mãe coruja às vésperas do casamento da filha.
–Por favor, mulher. –resmungou Marcos. –Controle-se ou vai acabar fazendo o mesmo na cerimônia de verdade.
–E será que você não pode me deixar em paz mesmo em um momento como este? –grunhiu a mãe da noiva.
Marcos conhecia bem sua esposa. Margaret era muito temperamental. Os olhos dele se encontraram com os da filha. Eles sorriram. Estava tudo bem.
E a cerimônia começou. O promotor da agência de casamentos fez questão de que o ensaio fosse o mais natural possível, e até convenceu o padre da paróquia a celebrar uma missa de verdade. De trás de seus óculos de fundo de garrafa, o bom e velho padre Becker puxou seu tom mais sério. Era um homem alto, meio rechonchudo, com um rosto bastante quadrado. Rituais eram sempre importantes, mesmo um de mentira como aquele. Mesmo assim, Marcos ponderou, o sermão pareceu um pouco mais longo do que o necessário. Mas ele não entendia muito de rituais, de qualquer maneira, e os noivos suportaram a pequena tortura de bom grado. Quarenta minutos depois, Denis e Isabela se beijaram, e tudo estava concluído. Agora, bastava aguardar até a noite seguinte. O beijo, aliás, não pareceu de mentira.
–São tão lindos! –exclamou Margaret, com os olhos em lágrimas.
Marcos apertou a mão da esposa. Ela se enlaçou em seu braço como há tempos não fazia. Margaret, aliás, estava linda em seu vestido de ensaio, ele precisava admitir. Em dias como aquele, ele percebia que o tempo fora mais generoso com ela.
No fim do ensaio, os noivos cumprimentaram os padrinhos e os poucos presentes. Na noite seguinte, seriam quinhentos convidados. Marcos deu uma olhada nos arranjos de tecidos e rosas vermelhas e brancas. A igreja estava deslumbrante. Ficaria ainda mais. Pelo preço que pegara aos decoradores, era o mínimo que eles podiam fazer.
Carlos Dias se aproximou. Era o padrinho de batismo de Isabela, um dos amigos mais antigos da família. Agarrou a afilhada com tanta força que fez a moça gritar. Estava exultante, quase mais exultante que a noiva, por sinal.
–Eu amo você menina. Parece que foi ontem que eu te peguei no colo.
Carlos Dias era o delegado da cidade, um sujeito grande, entroncado, de cabelos ruivos e voz rouca, dono de olhos ligeiros, de uma barriga saliente e de um único casaco marrom escuro e comprido que se transformara em um tipo de segunda pele. Marcos se lembrava dos contos de Maigret sempre que o encontrava, não sabia se era porque os dois se pareciam (em sua imaginação, é claro) ou porque o casaco do amigo tinha o mesmo cheiro de papel empoeirado e cigarros dos velhos livrinhos de bolso de seu falecido pai.
–E a madrinha? –perguntou a noiva.
–Em casa com a velha enxaqueca. –respondeu o delegado. –Mas vai estar aqui amanhã antes mesmo de o sol raiar. Ela ama você. Eu amo você! Ah, como eu amo você!
Isabela sorriu.
–Padrinho, eu quero apresentar meu noivo, Denis.
–Ah, eu amo você também. –afirmou o delegado. E agarrou o noivo com tanta força que fez os dois pés do coitado saírem do chão. Margaret tentou socorrer o rapaz. Marcos apenas sorriu. Abraços não matavam ninguém, mas os do velho Carlos Dias chegavam perto.
Estavam diante do altar, e Marcos pode ver a imagem de Cristo frente a frente. Percebeu algo que ignorara até o momento, uma lágrima grossa e vermelha que escorria pela face ferida. Fazia parte da escultura, naturalmente, mas parecia incrivelmente real. Ao contrário da esposa e das filhas, Marcos não era católico. Na verdade, não era nada, mas achou aquilo bonito. Seria realmente possível, uma lágrima de sangue?
Capítulo 12
Os ponteiros do relógio se moviam. Amanda percebeu, o tempo não parava. Ela permanecia sob seu velho tapete felpudo, recostada no sofá, repassando cada momento de sua vida até ali. Só então se deu conta de como os segundos eram rápidos e de como eles se entrelaçavam uns aos outros e se contorciam. Não que nunca tivesse percebido aquilo antes, é claro, mas tudo agora se revelava de forma diferente, mais intensa, mais clara. O tempo era um monstro, um monstro com tentáculos dos quais ninguém podia fugir. Como queria escapar daquilo. Como queria voltar no tempo. Apenas alguns meses seria o suficiente. Mas era impossível.
Amanda caminhou até o banheiro e encharcou o rosto com a água fria da torneira. Aquilo lhe trouxera certo alívio, mas também uma estranha sensação de déjà vi. O espelho refletia sua face limpa, imaculada, sem nenhum sinal dos ferimentos que esperavam por ela em algum lugar no futuro. Fazia dias que Amanda não se observava no espelho, não de verdade. Havia algo em seus olhos que nunca estivera ali antes: um cansaço profundo, um vazio assolador, e algo mais, uma espécie de pressentimento estranho.
Amanda enxugou o rosto na toalha macia e voltou para sala. As paredes pareciam desmoronar. Sim, aquela casa já fora seu lar, mas não mais. Ela era apenas uma intrusa naquele lugar. Eric entrou. Por um momento, ficou ali, parado na porta. Não disse nada. Não olhou pare ela. Mesmo não estando próximos, Amanda pode sentir o cheiro de cigarros e álcool. Ele caminhou para o quarto, nas passadas lentas e inseguras de alguém quase bêbado e desapareceu nas sombras do corredor. Amanda estava decidida, aquilo precisava acabar.
Dizem que o amor é uma montanha. É mentira. O amor é um barquinho de papel em meio a um oceano tempestuoso, jogado de um lado a outro por ondas violentas desprovidas de compaixão. Era uma luta injusta.
Capítulo 13
Marcos Hasse parou seu sedan comprido em frente ao gramado. Ficou ali, esperando que alguém viesse ajudá-lo a carregar as compras. Ninguém apareceu. Era a segunda leva de bugigangas vindas da butique de noivas, e ele ainda tinha algumas voltas para fazer antes de dormir. Não queria nem imaginar como seria no dia seguinte. Ele segurou os pacotes com uma das mãos e as pizzas com a outra, fechou a porta do carro com um dos pés e partiu.
Uma garoa extremamente fina desabava sobre a cidade. Desabara o dia todo, é verdade, e prometia continuar por toda a noite. Mas era tão fria que Marcos começou a se perguntar se seria realmente chuva. Talvez fosse neve, ele pensou, ou quem sabe nitrogênio líquido. Não, era apenas chuva mesmo, mas seus ossos não paravam de tremer. Mesmo para alguém que gostava tanto do frio, era exagero. Ou talvez ele estivesse apenas ficando velho.
Marcos alcançou a porta o mais depressa que pode. O lado de dentro estava bem mais quente. Ele soltou as compras lentamente, já bastante preocupado. Era uma daquelas situações difíceis de compreender: ali estava sua mulher, a mãe dela e meia dúzia de parentes e amigos. Um casamento aconteceria na noite seguinte, era verdade, mas aquelas pessoas ali, reunidas daquele jeito, naquela hora da noite, não parecia bom sinal. Além disso, todos carregavam aquela expressão preocupante de “não deve ser nada!”. De tão silenciosos e estáticos, Marcos chegou a pensar que poderia ser uma alucinação. A esposa se aproximou quando o percebeu. Estava preocupada.
–O que aconteceu? –perguntou ele.
–Isabela... –respondeu Margaret.
Algo com o vestido, ele imaginou, ou com o vocalista metido a estrela da banda contratada, ou quem sabe com a última remessa de flores. Definitivamente, não. A esposa estaria histérica em qualquer uma dessas situações, mas aquela calma forçada em sua voz era preocupante.
–O que aconteceu com ela? –perguntou Marcos.
–Não chegou em casa. –respondeu a esposa.
–Desde quando?
–Desde o fim do ensaio. Ela foi levar o Denis em casa, mas ainda não voltou. Nós tínhamos coisas para fazer, e eu... Eu não entendo, Marcos.
–Ela ainda deve estar lá. –afirmou ele.
–Você sabe que ela não costuma dormir lá. E não acho que ela iria começar na véspera do casamento.
A esposa estava certa como sempre, ele sabia. Marcos consultou o relógio de parede: quase meia-noite. O ensaio terminara às dez da noite, e a casa do noivo ficava a menos de dez minutos de carro da igreja. Não fazia sentido.
—Eu vou falar com o Denis.
Marcos voltou ao carro e partiu. Daquela vez, a chuva passou despercebida. Em menos de vinte minutos, chegava ao destino. Ele bateu à porta por algum tempo, mas ninguém respondeu, então deu a volta e chamou na janela do quarto. Um vulto surgiu além do vidro.
A visão de seu futuro genro sem camisa era algo preocupante. Marcos não se lembrava de já ter visto alguém tão magro pessoalmente. Podia contar as costelas do rapaz através dos vidros, mesmo no escuro. Denis não compreendeu a razão da visita. Abriu a janela tremendo de frio, com a típica expressão de quem não está entendendo nada. Marcos observou a cara de sono do rapaz. Estava dormindo há uma hora, pelo menos.
–Marcos? Por favor, entre!
A casa de Denis era muito pequena e um tanto mal acabada, mas tinha certo charme, ele teve de admitir. Marcos parou diante da porta de entrada, esperando o rapaz vestir uma camiseta.
—O que foi?
—Isabela não apareceu em casa. Ela não está aqui, está?
—Não apareceu em casa? Como assim não apareceu em casa? O que você está dizendo?
—Por favor, Denis... Só estou perguntou se ela está aqui.
—Não. Ela me deixou em casa depois do ensaio.
—Que horas foi isso exatamente?... Denis!...
—O que? –perguntou o rapaz, um tanto fora do ar.
—Qual foi o horário?
—Não sei bem. Dez e quinze, dez e meia... São quinze minutos de carro até a casa de vocês.
—Eu sei. Mas ela não apareceu.
—Como? Como isso foi acontecer?
—Eu não sei. Eu realmente não sei. Eu vou procurá-la.
—Eu ajudo...
Três horas depois, Marcos retornava para casa depois de visitar todas as emergências da região, e Margaret terminava de ligar para a última das amigas da filha. Isabela tinha muitas amigas, mas nenhuma delas tinha qualquer notícia. Denis passara horas a fio perambulando pelas ruas da cidade e, quando retornou à casa dos Hasse, estava encharcado e tremendo de frio. Então todos permaneceram ali, em uma longa e exaustiva espera. Nenhuma palavra fora dita durante horas. Quando a tênue claridade da manhã já surgia no lado de fora, a campainha melancólica do telefone explodiu pela sala. Ninguém se moveu. Nenhuma voz se ouviu. Foram necessários três toques para que Marcos Hasse se erguesse da poltrona. Uma sensação ruim penetrara seu corpo, seus ossos, agarrara-se a suas costas. Ele caminhou lentamente até o telefone e o puxou do gancho.
Era o delegado Carlos Dias. Fora avisado do desaparecimento da afilhada horas antes e colocara todos os policiais de plantão nas buscas.
—Alô!
—Rodovia 102, a sete quilômetros do centro da cidade. —disse o delegado. Sua voz tinha um timbre sombrio, pesado. —Venha sozinho!
Capítulo 14
Não havia esperança naquela manhã. O céu era de um cinza denso, fazia com que tudo se escurecesse. A paisagem se desmanchava, perdia toda vida, todo brilho. O nada. Era essa a sensação. Marcos Hasse já não conseguia sentir o próprio coração batendo dentro do peito. Tudo nele não passava de um vazio assolador. A solidão daquela estrada interminável de asfalto apenas piorava tudo. Por todos os lados, apenas pastagens abandonadas cercadas por mourões velhos e cercas de arame farpado enferrujadas, árvores muito altas e matagais intermináveis cravados em banhados fedorentos. Marcos atravessava aquela estrada quase todas as semanas para pescar. Não se lembrava dela tão longa, nem tão deserta.
No fim de uma curva fechada, três viaturas policiais bloqueavam a passagem. Marcos freou lentamente. Viu policiais fardados se movimentando por entre as árvores que se aglomeravam do lado esquerdo da pista e caminhou até eles. Não demorou muito, e sua face foi da apreensão à angústia. Ele apressou os passos.
Um carro cinza se chocara contra uma das árvores. Era o carro de Isabella. O motor quase fora partido ao meio pela força do impacto. Marcos sentiu seu estômago revirar e se aproximou, já quase sem fôlego, então parou, respirou fundo e tentou caminhar novamente, mas seus joelhos vacilaram. As imagens se diluíam diante de seus olhos. Ele se controlou, caminhou mais alguns passos e viu alguém se aproximando. Era Carlos Dias.
–O que aconteceu? –perguntou Marcos, a face contorcida em uma carranca. –O que aconteceu com minha filha?
Carlos Dias não tentou responder. Na verdade, o delegado também não parecia muito bem. Ficou ali, mudo, com uma expressão pálida no rosto. Mas Marcos Hasse fora um policial, enfim, e um dos bons. Sabia interpretar os sinais melhor do que ninguém. Rastros de borracha derretida no asfalto: dois carros, lado a lado, em uma brecada brusca. O primeiro rastro seguia em direção ao acostamento. Era a marca do carro que explodira contra a árvore. O segundo seguia em frente por alguns metros e então parava repentinamente. Aro vinte e dois, talvez vinte e quatro. Um automóvel colossal: uma caminhonete grande, talvez um caminhão.
Marcos foi em frente, mesmo contra todos os seus instintos. Carlos Dias tentou impedi-lo, mas foi inútil. Um rastro de sangue surgia na beira do acostamento e deslizava até o carro. Marcos o seguiu. Recuou instintivamente ao ver o interior do veículo salpicado de sangue.
–Onde ela está?
–Nós não a encontramos. –respondeu o delegado.
–Como assim? Como não a encontram?
–Marcos, Isabela foi levada por alguém. Não sabemos por quem. Precisamos que nos ajude. Eu o chamei aqui por causa das marcas no asfalto. Os pneus do veículo são incomuns, um tipo raro, importado e muito caro.
–Foi levada? –perguntou Marcos, ainda preso a cena horrenda.
Sangue... Não parecia possível alguém sangrar daquele jeito. Foi então que ele percebeu, sobre o banco, do lado do motorista, um objeto pequeno e branco. Ele se aproximou do vidro, tentando compreender, mas se afastou em seguida, completamente tonto. Sentiu sua cabeça girar. Um líquido grosso e quente escalou sua garganta, então voltou ao lugar de onde viera. A coisa sobre o banco era um dente. Um dente de Isabela.
–Marcos...
–Não pode ser Isabela!... Não pode ser Isabela!...
–Marcos...
Marcos Hasse observou, pela primeira vez até então, o rosto sombrio de Carlos Dias.
–Os pneus... –disse o delegado. –Precisamos de sua ajuda com eles. É nossa melhor chance.
–Não conheço ninguém com um carro desse tamanho. Não faço ideia de quem seja.
O delegado suspirou, desanimado.
–Tudo bem! Temos muitos homens procurando por Isabela: viaturas, cães e até um helicóptero. Vamos encontrá-la.
Marcos caminhou até o meio da estrada deserta e observou a solidão desoladora daquele lugar. Nunca se dera conta de como aquela cidade era perigosa. E, ali mesmo, ele percebeu: era tarde demais.
Capítulo 15
Amanda reuniu as colagens de seus alunos do primeiro ano. Juntas, ocupavam quase todo o bagageiro do carro. O trajeto até seu trabalho não era exatamente curto, então ela resolveu se apressar. Mal cruzara a primeira esquina, porém, e um sujeito embriagado já às sete horas da manhã e dirigindo um carro muito velho lhe cortou a frente. Amanda ainda tentou reduzir, mas já era tarde. Seu carro golpeou a lateral do outro. O homem bêbado partiu sem dar importância, fazendo Amanda se contorcer de raiva.
Cerca de dois minutos depois, mais calma depois de golpear o volante tantas vezes que chegou a perder a conta, ela saltou para conferir o tamanho do estrago. Amanda, por sinal, não entendia muito de carros, mas deduziu que a fumaça branca saindo do motor não era bom sinal. Ela correu para um orelhão. Ainda pensou em ligar para o noivo, mas desistiu, então discou para o número de seu mecânico de confiança, que chegou menos de quinze minutos depois.
O velho Otto era baixinho, calvo e simpático. Tinha aquele jeito característico de avô que qualquer neto adoraria ter. Era dono do maior ferro-velho da cidade, de um sorriso largo e sincero e de um único macacão azul encardido de graxa.
–Mas que belo estrago você têm aqui! –exclamou ele.
–Um idiota bêbado me cortou. O pior é que eu preciso do carro para chegar ao trabalho.
–Então vamos nos apressar. –respondeu o velho, e guinchou o carro de Amanda como que em um passe de mágica.
O caminho até a oficina levou pouco tempo, mas Amanda estava realmente ficando preocupada. Em dez minutos veio o veredicto:
–Além do estrago no capô, você perdeu o radiador. Acho que consigo lhe entregar o carro no final da tarde.
Amanda levou as duas mãos à cabeça.
–Final da tarde? O que eu vou fazer até lá?
–Acho que eu tenho uma solução. Para sua sorte, ontem meu funcionário foi acometido por uma vontade louca de caminhar e deixou a caminhonete dele aqui.
Amanda observou atentamente o veículo velho e gigantesco, imaginando se seria capaz de dirigir algo daquele tamanho. Não pensou duas vezes.
–Você é um anjo, Otto.
–Não sou não. Sou só um velho que não tem onde cair morto. Mas agradeço o elogio. Vejo você no final da tarde.
Amanda partiu. Dirigir a coisa era mais fácil do que ela havia cogitado. O volante era leve, e o ângulo de visão era excelente. Só o câmbio era difícil de engatar. E o veículo era realmente muito potente, cortava milhas com muita facilidade. Ainda assim, ela chegou ao trabalho quase meia hora atrasada. Os alunos conheciam bem a professora e identificavam com facilidade quando ela não estava de bom humor, então se portaram como anjinhos.
Ao fim de oito horas, o dia de trabalho chegava ao fim. Amanda dispensou seus alunos, apanhou sua mochila e partiu para casa. Ao abrir a porta do carro, percebeu algo que lhe passara despercebido antes: a carroceria da caminhonete estava encharcada de um líquido vermelho escuro que, ela não teve dúvida, era sangue. Realmente muito sangue. Aquilo a chocou imensamente. Pensou em todas as probabilidades plausíveis, mas acabava sempre nas mais assustadoras.
Ela dirigiu novamente até o ferro-velho, sem saber ao certo o que pensar. Aquele veículo vermelho e gigantesco agora lhe parecia ainda menos agradável. Chegando a oficina, o velho Otto a chamou até uma pequena bancada de aço ao ar livre que servia como uma espécie de escritório. O funcionário, o dono da caminhonete, permanecia a certa distância, soldando uma peça metálica enferrujada. Era um sujeito magro e bastante alto, de olhos cavados, cabelos um tanto compridos e barba a fazer. Tinha um aspecto estranho, macabro. Mesmo sem levantar os olhos uma única vez, o sujeito parecia observá-la o tempo todo, Amanda não sabia como. Talvez fosse apenas sua imaginação pregando peças, mas era uma sensação bastante desagradável.
–Muito bem! –disse Otto. –Consegui resolver o problema do radiador e arrumei o amassado no capô, mas ainda preciso lixar e pintar. Preciso de mais tempo para isso, dois dias pelo menos. Eu conversei com William, e ele disse que você pode ficar com a caminhonete mais alguns dias se quiser...
–Não. –Amanda se apressou em responder. –Tudo bem. Eu trago meu carro outra hora para você terminar o serviço.
Amanda encarou Otto enquanto ele manuseava, desajeitado, a calculadora e desenhava números em um pequeno bloco de rascunhos, então observou novamente o sujeito estranho que, de algum jeito, parecia não tirar os olhos dela.
–Otto...
–Sim. –respondeu o velho, sem desviar os olhos da conta.
–Esse seu funcionário...
–William. O que tem ele?
–Eu vi sangue na carroceria da caminhonete. Muito sangue.
–Ah, sim. –respondeu o velho, esboçando um meio-sorriso. –William é metido a caçador. Na certa pegou um porco do mato alguma noite dessas.
–Um porco do mato? –perguntou Amanda.
–Sim. O que mais seria?
–É, pode ser.
Otto estendeu o papel.
–Prontinho.
Amanda observou o valor.
–Olha Otto, o meu pagamento...
–Não tem problema! Mês que vem eu lhe mando a conta. Você me paga em prestações.
–Você é realmente um anjo!
–E você diz tanto isso que eu estou quase acreditando. –respondeu o velho, animado. –Ainda tem o mesmo endereço?
Amanda sentiu um arrepio na espinha. Algo lhe dizia: “Não responda!... Não responda!...”.
–Sim.
Capítulo 16
–In tribulatione sua mane consurgunt ad me venite et revertamur ad Dominum…. –ele diz, num sussurro abafado. –Quia ipse cepit et sanabit nos percutiet et curabit nos. Vivificabit nos post duos dies in die tertia suscitabit nos et vivemus in conspectu ejus.
Do lado de fora, uma lua brilhante se ergue no céu. O frio da madrugada faz arder seu dorso nu. O ar gelado se une ao odor sufocante de poeira, urina e sangue quente, fere suas narinas. Ele estremece. De joelhos, repete a oração:
–Vivificabit nos post duos dies in die tertia suscitabit nos et vivemus in conspectu ejus.
“Largue essa coisinha suja!”, diz sua mãe, ao seu lado. Ela está ali, poderosa e gigantesca como sempre, esbravejando: “Seu vagabundo, amante do diabo!”. “Foi o diabo que fez você!”. “Renunciem a seu corpo”, ordena o homem enfiado em uma veste longa e escura. Ele também é gigantesco, mas não tão gigantesco quanto sua mãe: “Castrem-se pelo reino de Deus! O reino de Deus está aqui!”. “Largue essa coisinha suja!”, volta a gritar sua mãe. “O Diabo está ao lado de vocês agora!”, afirma o padre, “tentando-os, mandando usarem seus órgãos obscenos! Resistam ao Diabo!”.
Ele repete, mais uma vez, sua oração. Agora, de tão baixas, as palavras se tornam irreconhecíveis, um grande amontoado de sons sem sentido. Seus joelhos nus sangram, esfolados pelo chão áspero de terra batida do porão. A escuridão o envolve.
Algo surge ao seu lado. É uma sombra. Não, não está ao seu lado, está dentro de seu corpo, esmagando sua alma, sufocando-o. Há ovelhas em um gramado interminável, pedaços de ovelhas sobre uma mesa suja de madeira. Uma marreta gigantesca surge em sua mão. “Vamos, seu imprestável!”, diz seu velho pai, e ele é o maior de todos. De tão grande, quase toca o céu. “Acabe com ela! Bata na cabeça, com força! Bata, agora!”.
–Vivificabit nos post duos dies in die tertia suscitabit nos et vivemus in conspectu ejus.
Nas sombras, ele se põe de pé, apanha uma marreta gigantesca e bate com muita força em algo ferido, algo que tenta se arrastar, algo que solta um grunhido horroroso.
Capítulo 17
Era a noite mais quente desde o início do inverno, muito mais quente que o dia anterior, mas, ainda assim, fazia frio. Milhares e milhares de estrelas reluziam em um céu sem nuvens. Marcos Hasse estacionou seu carro em frente à calçada, os olhos vidrados indicando a falta de sono. Sua barba, sempre tão bem cuidada, hábito de ex-policial, crescera a esmo. Estava cansado demais, mas não sentia a fadiga, sentia apenas uma dormência profunda, que se espalhava por todo o corpo, mas era mais intensa atrás na nuca e no pescoço.
Marcos estivera procurando pela filha o tempo todo, não pregara os olhos um só segundo, andara pela cidade sem parar, mas eram muitos cantos escuros, muitas fazendas abandonadas, muitos e muitos quilômetros de floresta. Não havia realmente muito a se fazer. Era já o segundo dia sem respostas, mas ali estavam três viaturas policiais esmagando seu gramado, indicando novidades. As sirenes reluziam, mas não faziam qualquer barulho. Eram mais assustadoras daquele jeito.
No interior da casa, parentes trocavam conversas silenciosas. Sentada nos degraus da escadaria, sua filha caçula chorava sozinha, em silêncio, a cabeça enfiada entre os bracinhos finos. Marcos Hasse sentiu todo o peso do luto. Seu corpo agora formigava da cabeça aos pés. Sua esposa se aproximou: olhos inchados e vermelhos, o corpo magro quase dobrado em dois pela dor.
–Eles a acharam! –disse ela, e Marcos pode sentir as palavras rasgando sua carne.
–Onde?
O local ficava longe do centro, quase fora dos limites da cidade, um barraco sujo, fedorento e aniquilado, bem ao lado da estrada de terra. As paredes já se envergavam sobre si mesmas, e da madeira velha brotava um tipo estranho de fungo esverdeado. Por todos os lados, apenas o mesmo matagal interminável. Marcos freou o carro a poucos centímetros da faixa da polícia. Seus olhos carregavam o característico brilho sádico das pessoas desesperadas. Seu rosto já se havia desfigurado por completo. Ele caminhou na direção do casebre e arrebentou a fita da polícia quando passou, mas mal se deu conta disso.
–Você não devia estar aqui! –afirmou Carlos Dias, assim que o viu. –Eu não dei o endereço.
E o delegado realmente não o dera, mas Marcos era inteligente o suficiente para seguir o som das sirenes.
–Eu quero vê-la! –retrucou ele, sem dar atenção ao delegado.
–Não pode! Não posso permitir!
–Não vou atrapalhar a polícia. Por favor, não vou atrapalhar!
–Não é com a investigação que eu estou preocupado! –esbravejou o delegado.
Marcos explodiu. Não podia ficar ali, do lado de fora, enquanto sua filha sofria no frio e no escuro. Não podia abandoná-la. Carlos Dias era muito maior que o amigo, mas sentiu seus sapatos deslizando pelo barro escorregadio. Marcos avançava com uma força descomunal. Não batia, nem se contorcia, apenas empurra. Mesmo com a ajuda de um pequeno círculo de policiais, era difícil detê-lo.
–Eu vou entrar! –grunhiu ele. –Eu estou indo, filha!
–Não entre aí! –gemeu Carlos Dias. –Por favor, não entre aí!
–Ela precisa de mim! Ela precisa de mim!
Marcos estava em parafuso. Vozes ecoaram em sua mente: passado e presente. Não havia mais como separá-los. Já não ouvia os alertas de Carlos Dias. Só uma frase soou, então, acima de tudo.
–Ela não está inteira!
As palavras soaram mais alto do que o pretendido. Só então Carlos Dias se deu conta de que Margaret e a filha caçula acabavam de chegar no carro de um vizinho e estavam perto o suficiente para ouvir. Mas era tarde demais. Ele se sentiu constrangido. Mais que constrangido, simplesmente envergonhado. As palavras fizeram Marcos estacar no mesmo instante. A força de seus músculos foi drenada por completo.
–Como? Como assim? –perguntou ele.
–Por favor, não me faça soletrar! –implorou Carlos Dias. Os olhos do delegado eram de um vermelho vivo. Sua voz dessa vez não passara de um sussurro. –Eu a reconheci. É ela, eu tenho certeza. É Isabela.
Marcos sentiu os pensamentos fluindo em sua mente, fervilhando, assumindo uma forma sólida, densa, horrenda. Por um momento, tudo se apagou. Por uma fração de segundo, eram apenas ele, o nada e a coisa que repousava na escuridão pegajosa do casebre.
–Os legistas estão chegando. –prosseguiu o delegado. –Eles... Eles vão dar um jeito.
“Eles vão dar um jeito...”. As palavras ficaram ali, flutuando. Marcos se agarrava a elas, tentando entender o que aquilo significava. Como alguém poderia dar um jeito, ele se questionou. Será que eles a trariam de volta? Sim, eles a trariam de volta. Juntariam os pedaços, e ela ficaria bem novamente. Tudo voltaria ao normal. Só então ele se deu conta de que tal probabilidade não fazia sentido. “Eles vão dar um jeito!”. Sim, eles juntarão as partes de uma coisa sem vida que continuará sendo apenas uma coisa sem vida. E, naquele momento, embora a face de Marcos Hasse tivesse simplesmente recobrado parte da sanidade, algo dentro dele agonizava, se contorcia, se debatia.
–Eles vão dar um jeito. –repetiu Marcos.
–Sim. –afirmou Carlos, surpreso pela forma com que Marcos reassumira a compostura.
–Os legistas vão dar um jeito. Então poderemos organizar o enterro.
–Claro! –afirmou o delegado, e sentiu um calafrio percorrer sua espinha. –Eu vou ajudá-los no que for preciso.
–Vou esperar notícias, em casa. Não é bom para elas ficarem aqui.
–Claro! Faça isso!
Carlos observava Marcos atentamente. O amigo caminhou até o carro a passos firmes: não vacilou, não cambaleou, não olhou para trás... Mas, de alguma forma, movia-se de um jeito estranho, triste, parecia deslizar mais do que caminhar, como algo sem vida, como um fantasma. Marcos se acomodou ao volante, deu a partida e afivelou o cinto. A esposa e a filha embarcaram.
–Para onde você está indo? –perguntou Margaret.
–Para casa.
–Mas eu não quero deixá-la aqui! –sussurrou a esposa, aos choramingos.
–Não há nada que possamos fazer aqui agora. Não mais.
O carro manobrou e se lançou novamente pela estrada deserta.
Capítulo 18
A ligação de Carlos Dias veio na noite seguinte. Marcos estava na sala, em sua velha poltrona.
–Sim...
–Marcos, sou eu...
–Alguma novidade?
–Conversei com os legistas. Amanhã à noite, se tudo correr bem, eles liberarão o corpo.
–Certo! Obrigado, Carlos!
–Tudo bem com vocês? Precisam de alguma coisa?
–Não. Estamos bem. Obrigado!
Marcos desligou o telefone. Mal percebeu a esposa a seu lado.
–O que aconteceu? –perguntou ela.
–Os legistas vão entregar o corpo amanhã à noite. Vou procurar uma funerária pela manhã.
–Acha que ela vai ficar bem?
Marcos levantou seus olhos numa mescla de indignação e curiosidade, que logo se transformaram em uma pena profunda e cortante quando ele encarou os olhos confusos da esposa. A pergunta obviamente não fazia nenhum sentido, mas Margaret estava em pedaços.
–Tenho certeza que eles farão o melhor que conseguirem. Pode descansar! Amanhã resolveremos tudo.
Margaret permaneceu um tempo ao lado do marido. Queria dizer algo reconfortante, mas as palavras lhe fugiam. Como reconfortar alguém se ela própria não conseguia se reconfortar?
–Vou dormir com Caroline hoje.
–Ótimo! Ela precisa de companhia.
–Mamãe passou o dia aqui e vai voltar amanhã para ajudar.
–Ótimo!
–E você? Não vai subir? Você precisa descansar.
–Pode subir. Eu vou em seguida.
Marcos não subiu. Ficou ali, no escuro, por longas horas, até que o tique-taque do relógio de parede se transformou no único ruído audível no interior da casa. Por volta das duas horas da manhã, ele partiu.
O percurso até o hospital ultrapassava os três quilômetros. Mesmo assim, Marcos preferiu caminhar. Não queria acordar a esposa e a filha, e de carro ele chamaria mais atenção. Fazia frio, mas ele não sentiu. Seu corpo estava anestesiado. Marcos chegou ao hospital e, por mais de uma hora, aguardou do lado de fora do prédio, entre os arbustos do jardim. Esteve mais próximo de congelar até a morte naquela noite do que já estivera em toda sua vida, mas nem se dera conta do fato. Nem ao menos tremia. Horas depois, os últimos legistas deixaram o porão do prédio do hospital, onde funcionava o IML. Ele próprio levara muitos corpos para lá no tempo em que trabalhava na polícia. O lugar estava vazio agora.
Em todos aqueles anos de aposentadoria, Marcos havia se esquecido de como era bom em abrir portas fechadas à chave. Com uma pedaço de ferro que encontrara pelo caminho, em um movimento rápido, ele soltou a trinca e girou a maçaneta. No instante seguinte, mergulhou no corredor escuro do porão. Não quis acender o interruptor para não atrair atenção, então seguiu em frente no escuro, cada passo ecoando como uma explosão no silêncio daquele lugar fantasmagórico. Que força era aquela que o sugava, que arrastava seu corpo como se seus pés tivessem vida própria? Ele não sabia, tampouco se importava. Mais alguns passos, e a grande porta de aço se ergueu a sua frente. Era a última.
Ele entrou. A sala de autópsia era fria. Mais fria do que a noite que caía do lado de fora. Marcos acendeu o interruptor. Quando as lâmpadas fosforescentes tremeluziram, acompanhadas pelo característico som de asas de insetos, e se acenderam em um brilho muito claro, ele não teve dúvidas do que havia sobre a grande mesa quadrada de metal, debaixo do lençol branco respingado de vermelho.
Algo dentro dele lhe dizia que não devia prosseguir com aquilo, mas Marcos rejeitou cada um de seus instintos e caminhou, vagarosamente, até a mesa. Ele precisava saber, precisava entender pelo que Isabela havia passado, precisava sentir sua dor, vê-la uma última vez. Não o corpo costurado que estaria sobre o caixão no dia seguinte, mas o verdadeiro. A verdade, em suma. Ele precisava da verdade.
Por um longo instante, Marcos apenas deixou seus olhos pousarem sobre o que havia na mesa. A coisa sob o lençol não tinha o formato de algo humano. De fato, não era humano. Não mais. Os segundos se transformaram em minutos, a ponto de uma fina camada de gelo se acumular sobre seu casaco. Seus cabelos já estavam úmidos. Então, em um movimento único e muito lento, ele descobriu o lençol.
“Ela não está inteira”, foi a forma como lhe descreveram. Marcos imaginou ter alguma noção do que aquilo significava, mas estava enganado. A filha fora cortada em uns vinte pedaços, pelo menos. Daquele jeito, distribuída sobre a mesa gigantesca sem nenhuma ordem aparente, Isabela parecia muito menor do que sempre fora, muito menor do que uma pessoa poderia ser. A cabeça, além dos pés e das mãos, era a única coisa que não fora destroçada, mas uma pancada poderosa na nuca esmigalhara o crânio. Um hematoma na face esquerda tornava o rosto quase irreconhecível. Mas ele a reconhecia, a reconheceria em qualquer situação. Sim, era ela. Contudo, ao mesmo tempo, era outra pessoa, outra coisa.
Alguém limpara os pedaços horas antes, ele pode perceber. No dia seguinte, eles a costurariam, apagariam parte de seus ferimentos e a colocariam sobre um caixão bonito coberto de pétalas de flores. Era quase uma hipocrisia, ele pensou. Por um momento, foi como se ele próprio estivesse ali, deitado sobre o metal gelado. De certa forma, ele realmente estava. Parte dele estava. A expressão de Marcos, naquele momento, era abstrata, quase vazia. Seus olhos nem piscavam. Uma única lágrima grossa e fria percorreu seu rosto. E foi só isso.
No momento seguinte, ele cobriu novamente o corpo e partiu. Mas um pedaço seu permaneceu ali, sobre aquela mesa fria.
Capítulo 19
O enterro foi realizado três dias após a descoberta do corpo. Durante o velório, parentes e amigos tentaram, em vão, consolar Margaret Hasse. Ela estava destruída. A pequena Caroline permanecera o tempo todo ao lado do caixão. Parecia em transe. Não queria abandonar a irmã. Marcos permanecia em um canto da capela. Permanecera ali durante quase todo tempo, exceto durante os vinte ou vinte e cinco minutos nos quais o padre Becker celebrou a missa fúnebre.
Ao fim da cerimônia, Carlos Dias se aproximou do amigo.
–Eu sinto muito! –disse ele. –Realmente, sinto muito.
–Já encontraram algum indício?
–Não. Ainda não.
Marcos observou, por um momento, a amplitude da capela. Era um lugar bonito, aberto. Gravuras nas paredes lembravam a caminhada de Cristo ao Gólgota. Lágrimas, tanto nos desenhos como fora deles. Diante do pequeno altar, um pedestal de madeira sustentava o caixão fechado. Atrás do caixão, uma foto grande de Isabela. No teto, uma única gravura, um tanto abstrata, de Cristo na cruz. Marcos se sentiu novamente na igreja, na véspera do casamento. Por um momento, ficou ali, imaginando como teria sido o dia seguinte, a cerimônia, a festa.
–Não encontram nada: impressões digitais, fios de cabelos, pegadas? –perguntou ele.
–Pelo contrário, encontramos tudo: digitais, pegadas, resíduos de pele, fios de cabelo e de roupa.
–Mas, se encontram tudo isso, então?
–Nada. –respondeu o delegado. –As digitais não estão em nenhum banco de dados. Estamos perseguindo alguém que aparentemente não existe. O sujeito parece um fantasma.
–Espero, pelo bem dele, que ele realmente seja um. –respondeu Marcos.
Algumas horas depois, o caixão foi conduzido até a sepultura por mãos fortes. Um círculo se formou em torno da lápide recém escavada.
–Quero ver minha filha! –afirmou Margaret, antes de o caixão ser baixado.
Alguns familiares tentaram convencê-la do contrário.
–Quero ver minha filha! –repetiu ela, dessa vez com mais ênfase.
O sujeito da funerária removeu a tampa. O trabalho dos legistas e dos agentes funerários fora espetacular, Marcos teve de admitir. A mulher no caixão não se parecia em nada com a que estivera sobre a mesa de metal horas antes. Tampouco se parecia com sua filha. Havia uma pequena semelhança, é verdade, mas era uma semelhança superficial, como um cacho de uvas de plástico sobre uma mesa bonita. Marcos podia até distinguir as bases e a maquiagem. Margaret se ajoelhou ao lado do caixão e acariciou delicadamente o rosto da filha.
–Adeus, minha garotinha! –sussurrou ela. Estava destruída. O caixão foi selado e baixado. A terra o cobriu. Em breve, a grama faria o mesmo.
Capítulo 20
Era uma manhã fresca e úmida de primavera. Uma brisa gelada soprava do horizonte. O gramado espesso se estendia como um tapete verde sobre a colina de relevo irregular. Alguns morros eram pontiagudos, outros lembravam um amontoado de costelas gigantes, como se algum colosso adormecido repousasse debaixo da terra. Ao longe, um aglomerado de nuvens brancas se erguia no céu. Não que o fato, por si só, atrapalhasse a paisagem alegre, mas era uma pequena mancha na perfeição imaculada daquela manhã.
O garoto abriu sua bíblia gigantesca, pesada como uma lajota. Era um jovem loiro, de corpo esguio e traços delicados. Aparentava treze, quanto muito quatorze anos. O sinal de uma barba surgia timidamente em seu rosto branco, mas era ainda pouco mais que uma penugem. Seu suéter marrom de lã era visivelmente largo, ao passo que a calça jeans parecia se recusar a caber no dono, algo típico de crianças que herdam suas poucas roupas de parentes mais ricos. O resultado era um tanto cômico, apesar dos sapatos bem engraxados e do cabelo penteado com cuidado. Mas o garoto não se importava. Tinha coisas mais importantes com que se preocupar.
Depois de tragar o ar com força, sentindo o cheiro da grama úmida e de algo mais, ele folheou a bíblia e contemplou o trabalho de suas mãos. Sobre uma rocha do tamanho de um carro pequeno, cuja forma lembrava, com uma semelhança inacreditável, uma grande mão semiaberta, estavam os pedaços do que, não muito tempo antes, fora uma ovelha. Ao lado da pedra, a marreta assassina. Ele destroçara o animal como estava ordenado, aspergira o sangue e a gordura sobre corpo. Por via das dúvidas, conferira tudo uma segunda vez: Levítico treze, sete. Tudo perfeito, ele se convenceu, então fechou a bíblia, ergueu os olhos e as mãos e esperou.
Não houve sinal algum. Mesmo assim, o garoto permaneceu ali por um bom tempo, aguardando como um homem de fé. A manhã ensolarada se desfez após algumas horas, e uma pesada chuva se abateu sobre o campo. O garoto chorou. Algo dera errado, ele apenas não sabia o quê. De seus olhos, emanava o rancor. Deveria haver fogo, tudo devia estar em chamas, mas ele não fora ouvido. Teria de tentar mais uma vez. Às vezes, era difícil agradar a Deus.
Capítulo 21
Amanda chegava em casa depois de mais um árduo dia de trabalho. Achou o cachorro do vizinho mais bravo que o costume, mas não chegou a estranhar. O animal era uma fera, de qualquer forma. Na mesma rotina de todos os dias, ela ajeitou a casa, corrigiu algumas provas e preparou algo para comer. Por fim, ligou a televisão e descansou um pouco no sofá. O dia fora longo e cansativo, então ela resolveu tomar um banho antes do jantar.
A água quente fez bem a seu corpo. Era como uma massagem executada por inúmeras e minúsculas mãos. Ela ainda estava com espuma nos olhos, quando ouviu o barulho. Começou com um leve estalar no assoalho, que pareceu deslizar do meio da sala até a porta do banheiro.
–Eric? –ela perguntou, antes de enxaguar o cabelo. Ninguém respondeu. –Eric? –ela voltou a chamar. Novamente, não houve resposta.
Amanda fechou o chuveiro, vestiu o roupão e caminhou lentamente até a porta aberta do banheiro. As luzes da sala ainda estavam apagadas, exatamente como ela as havia deixado. Só para se certificar, Amanda caminhou até a porta de entrada e conferiu o painel do alarme. A luz verde indicava que tudo estava tranquilo. O noivo sempre fora meio neurótico com a segurança da casa, um velho hábito de policial, para o bem ou para o mal. Além das grades na janela, do muro alto, da iluminação externa e das três travas em cada porta, havia o sistema de alarme, que dispararia caso alguém forçasse qualquer entrada. Na certa, o ruído pela casa fora apenas uma impressão, ou quem sabe o efeito do frio cortante do lado de fora sobre a madeira do assoalho. Ali dentro, tudo permanecia confortavelmente quente graças ao aquecedor a gás.
Ainda desconfiada, Amanda caminhou até a janela e observou o lado de fora com muita atenção. Na casa ao lado, o cachorro estava prestes a virar cambalhotas de tanta fúria. Era um vira-latas grande e feroz por natureza, uma verdadeira máquina de matar, mas naquela noite, em especial, estava pior. Na certa, um gato. Os donos não pareciam estar em casa, mas, de qualquer forma, Amanda raramente os via. Do outro lado da rua, uma vizinha que saíra para tirar o lixo levantou um braço para cumprimentá-la. Amanda retribuiu o gesto. A mulher esfregava as mãos de frio, lançando vapores brancos ao ar, mas fora isso parecia bastante tranquila. Enfim, tudo parecia normal.
Amanda se enxugou melhor e vestiu seu pijama. O calor confortável causava uma agradável sonolência. O prato do jantar estava no forno. Amanda o apanhou e se sentou no sofá. Estava prestes a dar a primeira garfada, mas parou. Havia algo errado com a televisão: não era o programa que ela esperava. Na verdade, não era o canal que ela esperava. Tinha quase certeza que colocara no canal certo assim que ligara a TV. Mesmo assim, a tela exibia um desses programas religiosos, num canal que ela raramente pararia para assistir.
A mesma apreensão voltou, um pouco mais forte agora. Não chegava a ser medo, apenas um pequeno incômodo, mas era desagradável. Ela se ergueu do sofá, conferiu novamente o alarme e observou o lado de fora por um longo tempo. Nada. O cachorro do vizinho estava mais calmo agora, mas ainda rosnava alto. Quase dois meses depois, o animal morreria envenenado, mas ninguém ligaria os fatos, não até que fosse tarde.
Amanda suspirou para espantar a sensação estranha. Era sua mente, cansada como estava, que lhe pregava peças. Precisava dormir mais, ela decidiu, antes de trocar de canal. A ideia de que havia alguém ali, dentro da casa, fazendo-lhe companhia, parecia idiota. Afinal, só um fantasma conseguiria atravessar todo aquele sistema de segurança sem que ninguém percebesse. Ou, quem sabe, alguém absurdamente maluco e espantosamente inteligente. Amanda afastou a ideia e deu a primeira garfada.
Capítulo 21
Amanda chegava em casa depois de mais um árduo dia de trabalho. Achou o cachorro do vizinho mais bravo que o costume, mas não chegou a estranhar. O animal era uma fera, de qualquer forma. Na mesma rotina de todos os dias, ela ajeitou a casa, corrigiu algumas provas e preparou algo para comer. Por fim, ligou a televisão e descansou um pouco no sofá. O dia fora longo e cansativo, então ela resolveu tomar um banho antes do jantar.
A água quente fez bem a seu corpo. Era como uma massagem executada por inúmeras e minúsculas mãos. Ela ainda estava com espuma nos olhos, quando ouviu o barulho. Começou com um leve estalar no assoalho, que pareceu deslizar do meio da sala até a porta do banheiro.
–Eric? –ela perguntou, antes de enxaguar o cabelo. Ninguém respondeu. –Eric? –ela voltou a chamar. Novamente, não houve resposta.
Amanda fechou o chuveiro, vestiu o roupão e caminhou lentamente até a porta aberta do banheiro. As luzes da sala ainda estavam apagadas, exatamente como ela as havia deixado. Só para se certificar, Amanda caminhou até a porta de entrada e conferiu o painel do alarme. A luz verde indicava que tudo estava tranquilo. O noivo sempre fora meio neurótico com a segurança da casa, um velho hábito de policial, para o bem ou para o mal. Além das grades na janela, do muro alto, da iluminação externa e das três travas em cada porta, havia o sistema de alarme, que dispararia caso alguém forçasse qualquer entrada. Na certa, o ruído pela casa fora apenas uma impressão, ou quem sabe o efeito do frio cortante do lado de fora sobre a madeira do assoalho. Ali dentro, tudo permanecia confortavelmente quente graças ao aquecedor a gás.
Ainda desconfiada, Amanda caminhou até a janela e observou o lado de fora com muita atenção. Na casa ao lado, o cachorro estava prestes a virar cambalhotas de tanta fúria. Era um vira-latas grande e feroz por natureza, uma verdadeira máquina de matar, mas naquela noite, em especial, estava pior. Na certa, um gato. Os donos não pareciam estar em casa, mas, de qualquer forma, Amanda raramente os via. Do outro lado da rua, uma vizinha que saíra para tirar o lixo levantou um braço para cumprimentá-la. Amanda retribuiu o gesto. A mulher esfregava as mãos de frio, lançando vapores brancos ao ar, mas fora isso parecia bastante tranquila. Enfim, tudo parecia normal.
Amanda se enxugou melhor e vestiu seu pijama. O calor confortável causava uma agradável sonolência. O prato do jantar estava no forno. Amanda o apanhou e se sentou no sofá. Estava prestes a dar a primeira garfada, mas parou. Havia algo errado com a televisão: não era o programa que ela esperava. Na verdade, não era o canal que ela esperava. Tinha quase certeza que colocara no canal certo assim que ligara a TV. Mesmo assim, a tela exibia um desses programas religiosos, num canal que ela raramente pararia para assistir.
A mesma apreensão voltou, um pouco mais forte agora. Não chegava a ser medo, apenas um pequeno incômodo, mas era desagradável. Ela se ergueu do sofá, conferiu novamente o alarme e observou o lado de fora por um longo tempo. Nada. O cachorro do vizinho estava mais calmo agora, mas ainda rosnava alto. Quase dois meses depois, o animal morreria envenenado, mas ninguém ligaria os fatos, não até que fosse tarde.
Amanda suspirou para espantar a sensação estranha. Era sua mente, cansada como estava, que lhe pregava peças. Precisava dormir mais, ela decidiu, antes de trocar de canal. A ideia de que havia alguém ali, dentro da casa, fazendo-lhe companhia, parecia idiota. Afinal, só um fantasma conseguiria atravessar todo aquele sistema de segurança sem que ninguém percebesse. Ou, quem sabe, alguém absurdamente maluco e espantosamente inteligente. Amanda afastou a ideia e deu a primeira garfada.
Capítulo 22
Marcos Hasse estacionou seu carro em uma parte pouco movimentada da cidade e aguardou. Quase dois meses haviam se passado desde o assassinato. Poucos sabiam o que ele fazia no muito tempo que passava fora de casa nos últimos dias, mas ele não havia desistido de caçar o assassino da filha. Após meses vagando sem sucesso pela cidade atrás de pistas, faltava uma última coisa a se investigar.
Depois de alguns minutos de espera, um jovem alto e magro de pele clara e cabelos loiros e finos se acomodou no banco do passageiro.
–Obrigado por ter vindo, Alessandro! –disse Marcos.
–Não se preocupe com isso. –respondeu o rapaz. –Mas por que um lugar tão isolado?
–Porque preciso de um favor, dos grandes, e não quero que ninguém saiba.
–Depois de tudo o que você fez por mim, pode contar comigo.
–Eu soube que você ainda trabalha na polícia, que você foi absolvido naquele processo.
–Fui suspenso por um ano, mas ainda tenho meu distintivo, graças a você. Se não fosse seu depoimento, a corregedoria não acreditaria em mim.
–Seu distintivo pode ser útil para mim agora. –afirmou Marcos, estendendo um pedaço de papel. –É um favor pequeno, na verdade. Tenho cinco nomes nessa lista e preciso saber onde eles estão agora.
–E quem exatamente são essas pessoas?
–A polícia sempre acreditou que o assassinato de Isabela foi passional. Eles investigaram todas as pessoas que estiveram envolvidas com minha filha: ex-namorados, colegas de trabalho, coisas do tipo, mas não descobriram nada. Então eu pensei que talvez o alvo do crime não fosse realmente minha filha.
–Os nomes nesta lista são ex-criminosos que você prendeu?
–Mais do que isso.
–Criminosos que ameaçaram você?
–Só aqueles em quem eu realmente acreditei.
–Quer que eu investigue?
–Não, só quero que descubra onde eles estão. Eu mesmo vou fazer uma visita a cada um deles.
–Não vou pedir para você prometer que não vai feri-los, mas não faça nenhuma burrada, tudo bem?
–Pode ficar tranquilo.
Horas depois, o policial voltou com todas as informações, e Marcos começou a visitar seus velhos conhecidos. Dois dos homens na lista estavam mortos há algum tempo, o que lhe deixava apenas três nomes para investigar.
O primeiro deles morava em um prédio caindo aos pedaços na cidade vizinha. Estava em liberdade há dois anos, depois de uma pena de oito. Marcos ainda se recordava do dia da prisão: o homem o ameaçara muito quando foi preso, havia se ferido de verdade no tiroteio. Seus dois comparsas morreram na hora, e um dos policiais levou um tiro na perna, mas a coisa toda podia ter sido muito pior do que realmente fora: havia reféns, muitos deles.
Marcos encontrou o apartamento certo e bateu. O homem o mandou entrar, aparentemente sem muita força na voz, e a primeira coisa da qual Marcos Hasse se deu conta foi a cadeira de rodas largada em um canto sujo do apartamento. O homem estava deitado sobre a cama velha, com uma infinidade de tubos presos ao corpo, como se fosse algum tipo de máquina. O sujeito forte de dez anos antes murchara e, em seu lugar, havia agora um saco de ossos de cabelos brancos. Só as tatuagens pareciam as mesmas, tribais negros que se estendiam pelos braços e pelos ombros. Equipamentos monitoravam os sinais vitais do homem, como se ele pudesse morrer a qualquer momento, o que não parecia nenhum exagero, dado seu estado de saúde.
–Ora, vejam quem está aqui. –grunhiu o sujeito. –Se não é o homem que me colocou aqui, nesta cama... No fundo, eu sabia que você apareceria, mais cedo ou mais tarde.
–Sabia?
–Vi a reportagem sobre a morte de sua filha na televisão. Pelo que disseram, na época, a polícia não tinha nenhum suspeito. Eu sabia que você se lembraria de mim.
–Foi você?
O homem levantou os braços cheios de tubos.
–E como eu faria algo assim?
–Você costumava ter comparsas.
–Meu irmão e meu cunhado! –berrou o sujeito, e aquilo lhe demandou muita energia. Ele se acalmou e prosseguiu. –Meu irmão mais novo. Era só um garoto na época.
–Eu sei disso.
–Não tenho mais ninguém. Você os tirou de mim. E fez isto comigo: uma vértebra da coluna partida, infecção nos rins e no fígado, um pulmão perfurado. Dez anos, e eu não tenho nenhuma chance de melhorar.
–Então, eu sou o culpado?
–Foi a sua bala.
–As suas atingiram um garotinho de três anos, na época. O menino quase morreu. Ele está bem agora, mas não graças a você. Vocês roubaram um banco, fizeram pessoas inocentes de reféns, atiraram na polícia. E você acha que eu sou culpado?
–Era só um malote de dinheiro, cara. Só um punhado de papel.
–E mesmo assim vocês fizeram tudo o que fizeram por ele.
Houve um instante de silêncio meditativo.
–Não fui eu. –disse o homem, por fim, e soou sincero. –Se eu fosse matar alguém, me vingar, seria você, não sua filha. Eu não faria algo assim. Eu tinha uma filha também. Nem sei mais onde ela está.
O homem começou a chorar. Um choro verdadeiro. Ele era inocente daquela vez. Marcos largou um maço de notas de vinte sobre a cômoda e partiu.
–Eu sinto muito pela sua filha. –ainda disse o homem, mas Marcos já havia desaparecido.
O segundo nome da lista não foi difícil de localizar. Estava na maior prisão de segurança máxima do estado. Fora preso uma vez, por Marcos e sua equipe, e, depois de oito anos, acabou preso novamente, pela morte de um comparsa. A data da segunda prisão coincidia, mais ou menos, com a data da morte de Isabela. A viagem até a penitenciária foi longa, quase duzentos quilômetros de asfalto, mais vinte e cinco quilômetros de chão, e ali estava ele.
O nome do sujeito era Ernesto Batista. Um nome aparentemente inofensivo, ao contrário do dono. O sujeito era um psicopata: cruel, esperto, violento. Trabalhava como torturador oficial de um cartel de drogas, anos antes. Da primeira vez que o prenderam, Marcos e sua equipe interromperam uma sessão de tortura, e a imagem ainda assombrava seus pesadelos. Certa vez, diziam, o homem fizera um pobre coitado segurar as próprias tripas e correr três quilômetros para o hospital para conseguir ajuda, tudo por pura diversão. Se havia uma mente doente o suficiente para fazer o que fizeram com sua filha, seria certamente aquele homem.
Marcos se acomodou na cadeira, do outro lado do painel de vidro, e aguardou pelo prisioneiro. O homem chegou, conduzido por um agente penitenciário muito forte, e se acomodou do outro lado painel. Era um sujeito estranho: olhos negros, cabelos grisalhos, um rosto cheio de cicatrizes, o nariz visivelmente torto. Da primeira que o prenderam, o homem tinha quarenta anos. Poderia facilmente ter passado trinta anos na cadeia, mas um juiz não muito inteligente achou por bem soltar o prisioneiro por bom comportamento, menos de dez anos após a prisão. Marcos ainda se lembrava da forma como o homem ameaçara cada um dos membros de sua equipe. Suas ameaças eram sinceras: ele não parecia nervoso quando foi preso, com o punhal cheio de sangue nas mãos, apenas apontou a lâmina para Marcos e prometeu vingança: "Eu vou pegar você!", ele disse. “Não, melhor, eu vou pegar todos que você ama”.
–Há quanto tempo! –exclamou o homem, com sua voz rouca. –Deixe-me calcular: vinte anos, eu acho. Você era só um policialzinho metido na época. Agora está velho. Quase tão velho quanto eu.
Marcos ouvia tudo em silêncio. O homem continuou.
–Eu sei por que você está aqui: acha que eu matei sua filha.
–E você matou?
–E o que você faria se eu a tivesse matado? Diga-me: tire essa pose de bom samaritano da cara e me diga o que você faria! Eu sei o que eu faria: eu cortaria fora suas bolas e sua língua, arrancaria seus olhos com você ainda vivo e lhe mostraria sua cara feia sangrando. Eu fiz isso uma vez, sabia? A cara do sujeito... Era impagável. Mas, diga-me, o que você faria se...
–Você não a matou. –cortou Marcos.
–Sim, eu a matei.
–Se a tivesse matado, não estaria contando vantagem. Não seria preciso. Haveria algum tipo de satisfação pessoal. Não há nenhuma. Você é só um pobre coitado.
Marcos se levantou e estava prestes a sair.
–Está bem, eu não matei sua filha. –disse o sujeito. –Mas posso matar a caçula. Que tal?
–Você é um sociopata, Ernesto: não tem família, dinheiro, ou amigos. E vai passar trinta anos na cadeia. Noventa anos... Você terá noventa anos quando for solto: vai precisar de um andador para ameaçar alguém.
Marcos deixou o homem soltando insultos e partiu.
Tudo aquilo fora uma perda de tempo. Mas faltava ainda um nome na lista. Aquele estava solto e muito bem. Era um conhecido da cidade quando Marcos o prendeu por tráfico de drogas, e não ficou muito contente na época. Agora, o sujeito tinha quarenta e tantos anos, uma casa muito boa e um trailer de fast-food que parecia render algum dinheiro. A vida havia melhorado para ele, aparentemente. Morava em uma pequena cidade à beira da praia e, de sua varanda, era possível ver o mar. O caminho até ele fora longo, mais longo do que o caminho até a penitenciária, e Marcos já se sentia bastante esgotado.
Passava já das dez da noite quando o homem abriu a porta da frente para levar o lixo para fora e acabou não percebendo o visitante inesperado encostado na cerca de madeira. Pelos vidros da janela, era possível enxergar a esposa lavando a louça do jantar e o filho de cinco anos assistindo desenho.
–Bela noite, não é mesmo? –perguntou o intruso. Estava ali, dentro de seu terreno, parado nas sombras, bem ao lado de sua casa. Tudo bem que a casa não tinha muros, mas era possível perceber que aquilo era uma propriedade privada. Uma verdadeira falta de educação, ele ponderou. Em outros tempos, o sujeito não acabaria bem.
O dono da casa se aproximou do intruso para enxergá-lo melhor e quase caiu de costas na grama quando percebeu quem era.
–Marcos... Marcos Hasse.
–Douglas... As coisas vão bem para você, pelo visto.
–Sim, eu estou bem. –respondeu o sujeito, bastante assustado agora. –Eu melhorei, tenho uma família agora... Escute: eu sinto muito pelo que aconteceu com sua filha!
–Vamos dar uma volta. –pediu Marcos, deixando aparecer o revólver em sua mão. –Só eu e você. Pelos velhos tempos.
O sujeito olhou para dentro de casa, observou sua esposa e seu filho e pareceu dividido.
–Embarque no seu carro e vamos passear! –pediu Marcos, mais uma vez. –Eles ficarão melhor sem você.
–Tudo bem. –disse o sujeito, com voz trêmula. –Eu só tenho de pegar as chaves.
–Estão no bolso direito da sua calça. –afirmou Marcos. –Você as colocou aí quando chegou do mercado e ainda não as tirou.
O homem apanhou as chaves e observou mais uma vez a mulher e o filho. Receava nunca mais vê-los, mas não queria realmente envolvê-los naquele perigo.
–Vamos passear!
Os dois embarcaram e partiram.
–Para onde? –perguntou o sujeito, assim que chegaram ao fim da rua.
–Apenas dirija!
–Escute eu...
–Dirija!...
O carro vagou pela noite por meia hora, até mergulhar em uma parte bastante deserta e escura da cidade. De onde estavam, era possível ouvir o barulho sereno do mar. As águas estavam calmas naquela noite.
–Pare aqui! –ordenou Marcos. O sujeito obedeceu –Desça!
Os dois caminharam alguns metros pela areia. Agora, estavam frente a frente, iluminados apenas pela luz brilhante do farol do carro. Todo o resto era escuridão.
–Ajoelhe-se! –disse Marcos.
–O quê? Por quê?
–Por que fica mais fácil mirar. Ajoelhe-se!
O sujeito estava a ponto de chorar, mas obedeceu.
–Eu não sei o que você pensa que aconteceu, mas está enganado.
–Lembra do que você me disse quando eu o prendi, doze anos atrás.
–Sim, eu lembro. –respondeu o sujeito, sem conseguir tirar os olhos do furo do cano da arma.
–Repita o que você disse, naquele dia, por favor!
–Marcos...
–Repita!
–Eu disse: eu vou matar você, vou cortá-lo em pedaços. Vou... Vou cortar suas filhas em pedaços.
–E agora uma das minhas filhas foi cortada em pedaços. O que isso lhe diz?
–Eu não fiz nada... Eu sou inocente... Eu sou inocente.
–Eu quero acreditar em você, Douglas. Eu realmente quero acreditar. Mas você precisa me convencer. Me convença!
–O quê?
–Me convença! Por que eu devo acreditar em você?
–Por ele... Meu filho... Eu não posso mais falhar, eu não posso mais falhar. Ele precisa de mim... Eu tenho algo a perder agora. Por favor, não o tire de mim! Não...
–Feche os olhos e conte até dez. –ordenou Marcos.
O sujeito pensou em perguntar o motivo, mas decidiu que não queria saber e apenas obedeceu. Contou até dez, esperando pela dor do disparo, que certamente arrebentaria sua cabeça, se é que realmente sentiria alguma dor. Nada aconteceu. Mesmo assim, ele não abriu os olhos e apenas ficou ali, tremendo, por um longo tempo. Quando finalmente arranjou coragem para abrir os olhos, Marcos Hasse já havia desaparecido.
Capítulo 23
Caroline Hasse despertou de madrugada, depois de um pesadelo. Fora um sonho extremamente desagradável, mas era apenas disso que ela conseguia se lembrar. Depois de tudo, não conseguia mais pregar os olhos, então se levantou, caminhou até o andar de baixo, com cuidado para não despertar a mãe, e bebeu um copo de água. A coisa aliviou a sede, mas não o vazio no estômago. Só então ela se deu conta de que não havia jantado. Fazia isso às vezes, simplesmente se esquecia de comer. Mas não sentia fome, apenas uma ligeira sensação de embrulho. Depois de um tempo ali, parada, resolveu voltar para o quarto. Quando já estava no topo da escada, ouviu a maçaneta girar.
O pai entrou, fechou a porta e se atirou na poltrona da sala. A cabeça caiu entre as mãos e a respiração era a de alguém muito cansado. A menina observou aquela figura sombria com um aperto no coração. Nos últimos nove meses, aquela havia se transformado na rotina do pai: sair no meio da noite e perambular pela cidade, às vezes até o sol raiar, tudo para encontrar o responsável pela morte da irmã, mesmo que não fizesse ideia do que procurar. Não havia uma só pista, muito menos um suspeito, embora a perfiladora da polícia houvesse falado em crime passional. Alguém próximo da irmã estaria envolvido, mas quem? Isso a mulher não sabia responder.
Caroline Hasse voltou ao andar de baixo e parou ao lado da poltrona. O pai a observou e esboçou um sorriso cansado.
–Está tarde, querida. –afirmou ele. –Você vai para o colégio daqui a pouco. Precisa dormir.
–Eu sei. –respondeu a menina. –E o senhor, precisa de algo? Quer que eu faça um sanduíche?
–Não. Eu estou bem. Só volte para a cama, está certo?
–Tudo bem.
Antes de subir, a menina ainda deu um beijo na testa do pai, que estava gelado como se tivesse acabado de sair de um congelador. O inverno estava voltando. Tudo indicava que seria mais rigoroso que o último. O frio já mostrava suas garras, e a cidade era realmente muito gelada, algo típico de um lugar ao pé de uma montanha e cercado por fazendas abandonadas e por uma floresta gigantesca.
–Eu te amo, pai. –disse a menina, antes de subir.
–Eu também te amo, querida.
Caroline Hasse subiu, mas não conseguiu pregar os olhos. A figura sem vida do pai a desconsolava. As horas seguintes se arrastaram. Então o dia surgiu do lado de fora da janela, ensolarado e muito, realmente muito frio.
O sono só surgiu na escola, quatro horas depois, depois do intervalo. Era quase impossível manter a cabeça levantada. Para piorar, o professor de filosofia, um sujeito com uma barba muito grande e um ar muito tranquilo, quase zen, passou um trabalho escrito. Ela perdera a explicação por causa de um cochilo. Agora, havia uma pilha de jornais sobre sua carteira e nenhuma ideia do que fazer com eles, então ela começou a folhear as notícias, distraidamente.
Seria a sorte? Caroline Hasse se deparou com uma notícia que lhe despertou muita atenção. O título na capa do jornal dizia: "polícia recebe ajuda de fora e apanha assassino de crianças". Tratava-se de uma prisão, realizada em uma cidade pequena, a algumas horas de viagem. A edição era de dois dias antes. Acima da manchete, havia a foto de um homem. Não era o tal assassino, ela teve certeza. O sujeito tinha um rosto de policial, como seu pai. Era um homem bonito: feições meio quadradas, fortes, cabelos escuros e lisos, um nariz fino e comprido, malares salientes e um queixo meio alongado. Apesar da foto em preto e branco, era possível identificar que os olhos do sujeito eram bastante claros, provavelmente verdes. No geral, o rosto lembrava um pouco o daquele ator que interpretava James Bond, só que mais forte e sem a covinha no queixo. Havia um que de uma daquelas estátuas da Ilha de Páscoa também, mas era algo bastante sutil. A notícia atribuía ao homem, mesmo sem citar nomes, não apenas a captura do dito assassino mas também a prisão de muita gente ruim, apesar de mencionar o empenho de toda a polícia. Não era um jornal sensacionalista, ela podia perceber. Era uma reportagem bastante honesta, séria, o que lhe trouxe bastante esperança. O sujeito na capa era chamado apenas de consultor criminal, fosse lá o que aquilo significasse.
Caroline Hasse suspirou. Estava completamente desperta agora. Lembrou-se mais uma vez do pai. Aquilo parecia uma dádiva. A polícia precisava de ajuda para encontrar o homem que matara sua irmã. Ela precisava agir: por Isabela, pela mãe, pelo pai. Principalmente pelo pai... Então apanhou uma folha do caderno e começou a escrever freneticamente. O professor a observou orgulhoso. Nem fazia ideia do que a menina estava de fato escrevendo.
Capítulo 24
Amanda estava em sua mesa, em sua sala. Mal se dera conta de que o sinal da escola já havia tocado. Os alunos do primeiro ano, ainda pouco mais que bebês, fizeram uma fila para abraçá-la. Ela os agarrou um a um. Alguns dos pais já estavam na porta esperando. Enfim, a mesma rotina de todos os dias.
Em poucos minutos, ela ajeitou suas coisas, levou o último aluno até a porta e aguardou pelo pai, que chegou quase vinte minutos atrasado. Em outras épocas, ela teria ficado furiosa. Agora aqueles problemas cotidianos lhe pareciam bastante pequenos se comparados a todo resto: o casamento que desabava, a indeterminação a respeito do futuro. Amanda retornou para a sala dos professores e ainda ajeitou tranquilamente seu material. Não tinha qualquer pressa. A sala dos professores era o cômodo mais sem graça da escola. Empatava, talvez, com a dispensa. Ainda assim, tinha algumas coisas úteis: armários numerados, um televisor e uma máquina de café-expresso. Na parede, próxima à mesa, estava a árvore feita de papel crepom com as datas de aniversários de cada um dos professores do colégio, além de alguns retratos.
Amanda estendeu a mão e puxou uma das fotografias. Era uma das suas: ela e o noivo na praia, debaixo da proteção da sombra de uma palmeira alta, com o mar aos fundos. A fotografia fora tirada poucos meses depois de os dois começarem a morar juntos, quase quinze anos antes. Ela e o noivo estiveram juntos por tanto tempo que ficava difícil lembrar como era a vida sem ele. Aliás, Eric era seu noivo apenas no nome, uma definição idiota de uma sociedade machista que não admitia que uma mulher e um homem pudessem morar juntos sem estabelecerem qualquer vínculo formal. Eles tinham suas coisas, suas economias, seus investimentos, e conseguiriam viver muito bem um sem o outro. A ideia, contudo, nunca a atraíra, até aquele momento pelo menos. Amanda não sabia o que era amar outra pessoa. Nem tinha vontade de descobrir. Mas as coisas estavam mudando.
O primeiro encontro... Amanda nunca tivera uma vida fácil. Os pais eram viciados e alcoólatras, mas a mãe se libertara dos vícios pouco antes de morrer. Antes disso, abandonara o marido e se casara com um homem muito bom, muito diferente. Amanda tinha boas recordações do sujeito. Foram bons anos. Ela se recordava bem daquela época, apesar de ser pouco mais que um bebê. Mas aquilo durou muito pouco tempo.
Quando a mãe e o padrasto faleceram em um acidente de carro, Amanda fora mandada de volta ao pai, que fazia questão de lembrá-la que não a queria em sua vida. Ainda assim, seu velho pai encontrara um modo criativo de se vingar da ex-esposa castigando a filha, fazendo da menina uma espécie de escrava. E fizera isso por quase dez anos. Ao longo desse tempo, graças ao vício cada vez mais pesado do pai, os dois tiveram de se mudar umas oito vezes, sempre para lugares piores. A última casa, no entanto, não era tão ruim quanto as anteriores, mas era certamente a mais modesta, um barraco de madeira com dois cômodos e um banheiro.
Certo dia, em sua segunda semana na nova casa, quando recém completara treze anos, Amanda esquecera uma torta de frango no forno. O resultado final nem ficara tão ruim, apenas uma borda um pouco escura, mas era motivo o suficiente para enfurecer o pai, que a atirou porta a fora com uma força absurda. Um temporal violento despencava sobre a cidade, e Amanda foi parar de boca em uma poça de lama. Ainda por cima, teve de ouvir o pai a xingando pelos mesmos nomes com os quais costumava xingar a mãe, antes de bater a porta e trancá-la do lado de fora.
Aquilo era humilhante. Quase todos os vizinhos presenciaram a cena. Ela não tinha forças para se levantar, então ficou ali, chorando e tremendo de frio. A senhora negra da casa ao lado se enfiou em uma capa de chuva e a acolheu. Ergueu-a do chão com o vigor de um homem forte, e a levou para sua casa. A mulher tinha um filho loiro pouco mais novo que Amanda. Não devia ser seu filho de verdade, mas Amanda nunca havia pensado muito nisso até aquele momento. Aliás, nunca havia reparado muito nos vizinhos.
O garoto se assustou com o estado da menina. Gentilmente trouxe-lhe uma toalha e um copo de água com açúcar. Amanda não parava de chorar, e a bondade de estranhos só dificultava tudo. Depois de se secar, ela apenas deixou seu corpo cair, sem forças, na pequena escadaria de madeira que levava ao segundo andar da casa velha. Não queria molhar a mobília da casa. A casa dos vizinhos era muito maior que a do pai e muito mais ajeitada. A senhora acendeu a lâmpada da cozinha e disse ao filho para arranjar algo com que a garota pudesse se cobrir. A sala permanecia iluminada apenas pela chama de uma lareira velha. Fazia mais calor ali dentro, mas, mesmo assim, Amanda tremia de frio. A friagem a havia penetrado até os ossos.
O garoto arranjou um cobertor pesado.
–Eu estou molhada, senhora. –argumentou Amanda. –Vou molhar seu cobertor.
–Ora, não se preocupe com isso, meu anjo. –respondeu a mulher. –Vamos filho, cubra a menina!
O garoto obedeceu. Estendeu o cobertor sobre os ombros de Amanda com delicadeza e sentou ao seu lado na escada. O cobertor fez efeito em poucos minutos, mas os tremores continuavam, mais por efeito da raiva que do frio.
–Quer outra coberta? –perguntou o garoto. –Ou talvez uma cadeira para sentar mais perto do fogo?
–Quero desaparecer! –grunhiu Amanda, mas não falava com o menino. Falava, talvez, consigo mesma, talvez com Deus, ou quem sabe com a mãe, que aquelas alturas não poderia responder mesmo se quisesse. –Eu preciso fugir. Mas tenho medo, tenho medo de ficar sozinha.
–Eu fujo com você. –afirmou o garoto, decidido.
–O quê? –perguntou Amanda.
Os vizinhos, até aquele momento, eram pouco mais que vultos generosos sem rosto. Ela não havia, de fato, prestado atenção neles. Mas, agora que encara o garoto nos olhos, seu coração se aqueceu. Era um rapaz muito bonito: rosto forte, apesar da pouca idade, traços bem marcados. Tinha aquele tipo de cabelo que, quando úmido (como era o caso), lembrava penas ganso, tamanha a leveza: eram cabelos realmente bonitos. Os olhos do garoto eram penetrantes, atrevidos. Amanda gostava daquilo.
–Eu disse que fujo com você. –repetiu o garoto, e ela prestou mais atenção em seus lábios úmidos e rosados.
–Mas você nem me conhece. –retrucou Amanda.
–Ainda assim, eu fujo com você.
–Mas eu não conheço você. –Amanda insistiu.
O garoto estendeu uma mão de dedos compridos e grossos.
–Eric... –disse ele.
Amanda apertou a mão quente do garoto.
–Amanda.
Houve batidas violentas à porta. A senhora atendeu. Amanda viu o vulto de seu pai parado na rua, mas não sentiu medo. Por alguma razão misteriosa, o medo fugira dela no momento em que seus olhos cruzaram com os do garoto.
–A vagabunda! –disse o pai. –Eu quero a vagabundinha! Sei que ela está aqui!
–Não há nenhuma vagabunda aqui, homem! Você veio ao lugar errado!
–Minha filha!
–Ah, agora sim! –disse a mulher, um tom acima do pai. –Ela não é vagabunda. E ela não vai sair daqui hoje.
–Ela é minha filha! Saia da frente ou...
–Ou o quê? –perguntou a mulher. Soara ameaçadora.
O homem se afastou alguns passos.
–Você não pode fazer isso.
–Verdade? Você também não pode fazer as coisas que faz. Por que não chama a polícia para resolvermos isso?
–Não vai ficar assim. –disse o homem, e voltou para a casa contrafeito.
A ideia de envolver a polícia não lhe agradava. A mulher olhou para Amanda.
–Você vai passar a noite aqui hoje, meu anjo. Mas não posso fazer mais do que isso. Afinal, ele é seu pai. Você precisa entrar em contato com alguém: tio, tia, primos...
–Eu não tenho mais ninguém. –respondeu Amanda. –Ele é tudo o que me restou.
–É uma pena! –exclamou a mulher. Olhando para o filho, ela completou: –E você, meu pequeno galanteador, vá com calma.
Então, era isso: o garoto era um Don Juan. Amanda não se importou. Algo lhe dizia que ele realmente gostara dela. E ela estava certa. A fuga prometida, é verdade, nunca acontecera de fato. Amanda morou mais um ano com o pai, até que ele simplesmente desapareceu e evaporou da noite para o dia, resultado das muitas dívidas de jogo. Eric se tornara uma presença constante em sua vida a partir daquele dia. Dois anos depois, os dois já estavam morando juntos. A mãe de Eric morrera pouco tempo depois, uma morte sofrida e triste, mas deixara para o filho uma economia considerável, suficiente para comprar uma casa nova. Os dois garotos nunca mais se separariam, daquele dia em diante. Mas nada dura para sempre.