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Eles...

Ao final do espetáculo, o hipnotizador disse aos hipnotizados: "acordem!". Então algo inusitado aconteceu: um deles acordou de verdade. Aquilo nunca havia acontecido antes. 

(Ray Nelson, Eight o'Clock)

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Atenção: isso não é mentira, brincadeira ou ficção!

Eles estão entre nós. Sim, eles... E quem são eles, você me perguntará. Ou melhor, o que eles são? A verdade, a mais absoluta verdade, é que não posso responder a nenhuma dessas perguntas. Não sei quem são, ou de onde vieram, ou como chegaram aqui. Talvez ninguém saiba. Tudo o que sei é o que eles não são: eles não são "nós". Eles se parecem conosco, é verdade, ou pelo menos podem se parecer. E as pessoas que você ama, as pessoas que você conhece, ou ao menos acha que conhece, podem mudar a qualquer momento. Talvez já tenham mudado. Então você me perguntará: se as pessoas que estão a minha volta, as pessoas que eu conheço tão bem, fossem substituídas por criaturas sem alma, eu não iria perceber? A resposta para essa pergunta está certamente em quanto você realmente as conhece e as ama.

No meu caso, eu adoraria dizer que percebi quando tudo começou, mas estaria mentindo. Não houve nada! Nenhuma marca estranha no chão, ou luz brilhante no céu. Nenhuma mensagem telepática, ou distorção eletromagnética. Eu não tive nenhuma intuição. E não percebi quando minha esposa foi substituída por aquela coisa. Eu gostaria muito de afirmar que percebi tudo, todas as sutis transformações, os mais imperceptíveis sinais, o perigo que corríamos, mas não fui capaz. Estava cego. Todos nós estamos. Vivemos na mais absoluta escuridão, na maior parte de nosso tempo, e nem nos damos conta disso. Eu fui enganado sem o menor esforço.

 

A primeira coisa da qual me recordo com certa exatidão, ainda que superficialmente, foi a trombada que levei de um sujeito franzino e apressado, bem no meio do supermercado. Nós fazíamos as compras da semana: minha esposa, nosso bebê e eu. Nosso carrinho estava pela metade, e ainda havia algumas coisas para comprar. O mercado estava cheio como um formigueiro, e os corredores não eram exatamente largos, por isso a confusão era inevitável. Eu mal conseguia me mover no meio de todo aquele tumulto e não dei maior importância ao esbarrão. Estava ao telefone, com um cliente importante, e respondi ao pedido de desculpa do homem no mercado com um aceno sem paciência. Nem prestei atenção no sujeito.

Naquele mesmo dia, pela manhã, eu havia recebido mais uma promoção na companhia de seguros onde trabalhava. Era a minha quarta em pouco mais de dois anos. A crise estava a pino, pessoas eram demitidas por toda a parte, todos os dias, mas eu acabava de bater um novo recorde de vendas. Meus clientes eram todos pessoas muito ricas. Graças a isso, minhas comissões mensais representavam quase seis meses de trabalho de meus colegas mais esforçados e menos afortunados.

Eu era um homem de sorte: tinha meus investimentos, uma bela casa, um belo carro, uma bela esposa e um filho lindo de dez meses. Meu trabalho era o sonho de consumo da classe média. E eu era bom no que fazia. Tudo em que tocava virava ouro. É verdade que minha profissão me tomava muito tempo: eu passava quase dezesseis horas por dia fora de casa, às vezes mais do que isso, mas era um preço baixo a se pagar pelo sucesso. Meu bom desempenho profissional também tinha outro preço: eu não era muito querido na agência onde trabalhava, não tratava muito bem meus colegas e meus subordinados. Meu chefe, por outro lado, me amava, em parte certamente por causa de todo o dinheiro que eu havia conseguido em todos aqueles anos na companhia. Meu chefe, aliá, era um completo idiota: um sujeito sínico, debochado, meio psicopata. Mas nós nos dávamos bem. Eu gostava dele, por alguma razão.

Minha vida egoísta seguia normalmente. E era bom ter uma esposa tão dedicada, embora as reclamações estivessem ficando piores nos últimos tempos, desde o casamento na verdade. Quase quinze anos juntos, e eu sempre ouvia as mesmas ladainhas. Já estava ficando cansado. Mas minha mulher era uma boa esposa: ela cuidava da casa, de nosso filho, passava, cozinhava e me satisfazia na cama. Não era grande coisa nisso, é verdade, mas eu não era muito exigente, apenas queria alguém para massagear minhas costas, arrumar minhas roupas, trazer meus chinelos sempre que eu chegava em casa, esgotado depois de mais um árduo dia de trabalho. Alguém para me ouvir e me animar. Seria, afinal, pedir muito?

 

Mas tudo mudou a partir daquela noite. Quando chegamos em casa, depois das compras, eu encontrei, no fundo de um dos bolsos de meu casaco, um pequeno bilhete amassado. Fiquei curioso com aquele pedaço de papel. Não me lembrava de tê-lo posto ali. Minha esposa ainda guardava as compras e parecia distraída com a tarefa. Que surpresa eu tive quando me deparei com aquele aviso, escrito por alguém cuja letra eu certamente não reconhecia: "sua mulher está enganando você". Havia também um número de celular.

Como um bom marido possessivo, imaginei de imediato que minha esposa estava me traindo e que alguém havia testemunhado. Fiquei irado, mas disfarcei muito bem. E por que minha esposa me trairia, alguém pode perguntar. Ela tinha tudo: uma bela casa para cuidar, o filho que sempre quis, um marido dedicado que dava muito duro e a sustentava com conforto. A maioria das mulheres mataria por aquilo, e ela estava jogando tudo fora.

A indignação tomou conta de mim. Subi para o quarto e disquei para o número no papel. Estava prestes a esbravejar com quem quer que fosse, mas a voz do outro lado da linha não me deu chance e disse apenas:

—Não é seguro! Ouça com atenção: há uma livraria ao lado da praça de recreação, no centro da cidade, bem em frente a um colégio. Aguarde ao lado do orelhão, à meia noite e meia! Não se atrase!

Meu sangue ferveu. Eu detestava receber ordens, ainda mais de pessoas que não conhecia.

—Escute aqui... —disse eu, em meu tom mais sério, mas o homem já havia desligado. Liguei novamente, várias vezes, e fui completamente ignorado. Eu esbravejei, xinguei, relutei muito, mas resolvi obedecer. O sujeito parecia estar falando sério.

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Quando, à meia-noite, eu disse a minha esposa que tinha um compromisso urgente de trabalho, fiquei esperando o bom e velho sermão sobre como eu não me importava com ela e sobre como fazia de tudo para não passar mais tempo com o menino. Para minha surpresa, ela concordou e disse apenas para eu não me esgotar demais. Eu teria gostado daquela resposta em qualquer outra ocasião: não naquele dia, não depois daquela ligação.

Desci até a garagem e liguei o carro, então parti, madrugada a dentro, pela avenida quase deserta. Os semáforos piscavam suas luzes amarelas intermitentes, como sempre ocorria depois da meia-noite. Ficava mais rápido cruzar a avenida daquele jeito. Cheguei ao centro da cidade em poucos minutos, estacionei em frente ao parque de recreação e localizei o orelhão ao lado da livraria. O colégio estava bem em frente, com seus muros altos e sua fachada marrom escura. Era, certamente, o local correto.

Tive de aguardar alguns minutos. Tudo permanecia estranhamente deserto. Não havia uma só viva alma por ali. Os brinquedos do parque de recreação e os equipamentos esquisitos de ginástica de uma daquelas academias ao ar livre jaziam completamente abandonados. O mesmo para a pista de corrida. As árvores solitárias permaneciam mudas, mas guardavam a paisagem como sentinelas gigantes, verdadeiras remanescentes de outras eras, de um tempo no qual havia por ali muito mais verde e nenhum concreto e sabe Deus que tipos de criaturas me espreitariam na escuridão de uma noite fria como aquela. Em volta do parque, apenas algumas dezenas de prédios muito altos. As luzes da cidade brilhavam forte na escuridão e se espalhavam por vários quilômetros, até onde os olhos conseguiam enxergar. Ainda assim, a meia-escuridão da madrugada era de assustar. A brisa gelada empurrava sutilmente um dos balanços. O farfalhar seco das correntes causava uma sensação incômoda, difícil de definir. O lugar, tão cheio nos fins de tarde, ficava fantasmagórico daquele jeito.

E o que dizer da escuridão do espaço? Eu olhei de relance para cima, apenas por um instante: milhares de estrelas presas nas sombras de um universo infinito me encaravam como uma legião de olhos sem corpos, como se pudessem me ver ali, tão desprezível. E estavam maiores naquela noite, provavelmente graças ao efeito da atmosfera úmida. Uma delas, em especial, uma grande estrela azulada quase do tamanho de Sírios, pareceu-me completamente estranha. Ao menos não me lembrava de já tê-la visto antes, mas fazia já alguns anos que não prestava atenção no céu. Afinal, eu tinha coisas mais concretas e importantes com o que me ocupar, e não era nenhum desocupado para passar minhas noites olhando para cima como um sonhador ou como um maldito poeta.

A noite estava bastante gelada, fazia uns seis graus ou menos, e eu não havia saído de casa preparado para ficar ali, de pé, por tanto tempo, por isso o frio já começava a incomodar. Meus dedos começavam a adormecer dentro dos sapatos. Eu já esfregava as mãos, quando o telefone tocou. Antes que eu pudesse dizer alô, a voz do outro lado da linha me cortou mais uma vez:

—Siga à direita do colégio, passe pela igreja, atravesse o calçadão e aguarde em frente à banca de jornais! Lembre-se, ande, não vá de carro! Rápido!...

—Escute aqui... —eu tentei dizer, mas a ligação já havia caído outra vez.

Fiquei ainda mais irritado, mas voltei a obedecer. Mal podia esperar para xingar aquele sujeito pessoalmente. Mesmo assim, segui como combinado: contornei o muro do colégio, passei em frente à igreja branca e alta e atravessei o calçadão do centro da cidade. As pequenas pedras zebradas que revestiam toda a praça estalavam debaixo dos meus sapatos. O ruído soava alto na solidão silenciosa da madrugada. As figueiras velhas agitavam delicadamente suas copas, como que acenando umas para as outras. Debaixo delas, duas dezenas de bancos escuros de madeira se espalhavam sem uma ordem muito clara: seriam convidativos em uma tarde quente de verão, debaixo da sombra das árvores, mas certamente não ao relento de uma noite tão fria.

Na praça, as lâmpadas foscas dos poucos postes de iluminação traziam algum conforto, ainda assim tudo ali parecia escuro demais, parado demais, desbotado demais, como o negativo de uma fotografia velha. Não havia movimento algum em parte alguma. Não fosse o vira-lata sarnento que dormia sossegado debaixo de um dos bancos, tudo estaria deserto. As muitas lojas que cercavam a praça permaneciam todas fechadas. Só havia luz na vitrine de uma delas, uma grande loja de fotografias. Até mesmo as portas de aço das galerias já estavam trancadas. Em resumo, eu estava sozinho ali. Ou, ao menos, era isso o que imaginava.

Ao lado da banca de jornais, outro orelhão me aguardava. Novamente tive de esperar por alguns minutos, mas o telefone finalmente tocou. Eu atendi, já prevendo o que iria acontecer, então não dei tempo para o sujeito me interromper novamente:

—Escute aqui, miserável, diga logo o que você sabe ou me deixe em paz!

—Você está lento. –afirmou o homem, do outro lado da linha. –Desse jeito, nunca vai despistá-los.

—Quem? –eu perguntei, mas não houve resposta.

Em vez disso, o sujeito ordenou:

—Atravesse a praça, siga pela direita, chegue ao hospital, corte pela rampa de veículos da emergência e caminhe até o final da rua! Desta vez, seja rápido!

A ligação foi cortada de forma brusca. Daquela vez, eu realmente fiquei nervoso. Bati o telefone no gancho com muita força apenas para amenizar a raiva, mas obedeci novamente. Era a curiosidade que me impulsionava, e algo mais, uma espécie de pressentimento estranho de que aquele homem tinha algo realmente importante para me contar.

Rápido e silencioso, atravessei mais uma vez a praça deserta da cidade. Cortei à direita, subi um pequeno morro, passei por uma rua repleta de prédios muito altos e finalmente cheguei ao hospital. Por ali, tudo tranquilo. Ninguém na rua, apenas alguns carros na avenida que levava à cidade vizinha. O hospital da cidade se erguia, silencioso,  no meio da noite escura: quatro andares muito largos repletos de corredores, portas e rampas. Subi os poucos degraus da escadaria do pátio, ainda do lado de fora, atravessei o pequeno estacionamento rotativo em frente ao hospital e segui por alguns metros, até alcançar a rampa de veículos da entrada do pronto socorro. E havia feito tudo aquilo só para seguir a orientação de um homem que eu nem conhecia.


Havia apenas meia dúzia de pessoas na sala de espera da emergência do hospital quando passei pelo pronto-socorro. Uma delas, uma velhinha meio esquisita, me acompanhou com o olhar por um longo tempo. Achei aquilo realmente estranho, mas continuei em frente. 


Ainda levei alguns minutos para chegar ao final da rua. O telefone na cabine pública já estava tocando quando alcancei o ponto de encontro. Eu o atendi, apressado, já quase sem fôlego. Pingava suor agora, um suor denso e pegajoso. As ruas ali pareciam ainda mais desertas. Em volta da cabine, apenas uma dúzia de prédios muito altos. Apesar do horário, havia vida em alguns daqueles apartamentos: movimentos, luzes, conversas, mas as pessoas, na grande maioria, já estavam em suas camas.


A linha permaneceu silenciosa por longos segundos depois que atendi a ligação. Senti medo de que o homem misterioso tivesse simplesmente desistido de mim. Era um medo tolo, eu tentei me convencer, mas já não conseguia. Finalmente a mesma voz voltou a surgir na linha, e o sujeito não parecia nem um pouco contente.


—Eu tive muito trabalho para me esconder durante todos esses anos. E você está muito lento. Não posso me arriscar. Despiste-os, ou a conversa acaba aqui.


—Despistar quem? –eu perguntei, sem compreender.


Quanto prestei mais atenção nos prédios em volta, percebi que algumas pessoas me observavam de suas janelas e sacadas. Olhavam direto para mim, estáticas e silenciosas como fantasmas. Estavam no escuro, todas elas, de modo que eu realmente demorei a percebê-las. Não deviam ser mais que vinte ou trinta daquelas figuras sombrias, mas foi o suficiente para me assustar de verdade.


—No terminal central. —concluiu o homem ao telefone. —Linha amarela, em direção à Universidade.

 

Pegue o primeiro ônibus! E seja rápido desta vez!


—Mas o quê...


A ligação caiu novamente. Eu larguei o telefone e cambaleei alguns passos na escuridão. As pessoas nas janelas dos prédios me acompanharam com os olhos, todas elas, todas ao mesmo tempo, como se tivessem combinado aquilo. A sensação foi estranha.


Agora eu estava correndo de verdade. Retornei ao calçadão, no centro da cidade, atravessei a praça e passei por uma ruela. Mais alguns metros, e eu já me encontrava em frente à avenida, muito perto do terminal central de ônibus. O terminal do centro da cidade não passava de uma gigantesca plataforma de concreto coberta por uma enorme armação vermelha de ferro retorcido e telhas de alumínio. Grades de ferro pintadas de verde e um canteiro com flores coloridas e arbustos espinhentos separavam a avenida do lado de fora das vias internas do terminal, por onde os ônibus trafegavam e manobravam.


Eu havia atravessado todo o centro da cidade e estava completamente sem fôlego, então parei um pouco para respirar. Foi quando um andarilho que atravessava a avenida empurrando uma daquelas carroças cheias de papel parou no meio do caminho e olhou para mim daquela mesma forma estranha. Não terminou seu trajeto, apenas permaneceu ali, no meio da estrada, com seu olhar estático e vazio. Eu o ignorei como pude e parti novamente, não sem me questionar o que haveria de errado com aquelas pessoas.


Poucos carros vagavam pela madrugada. Cruzei a avenida, mergulhei no túnel que levava ao terminal e o atravessei muito rapidamente. Todas as lojas do subsolo estavam fechadas. Eu me apanhei sozinho naquele lugar frio e escuro. Podia ouvir o eco de meus próprios passos ali embaixo. Subi as escadas do outro lado do túnel e emergi novamente, já dentro do terminal. Novamente na superfície, paguei minha passagem no guichê e atravessei a roleta. 


A garota dentro da cabine até cobrou meu ticket e me deu o troco, mas me acompanhou com os olhos daquele mesmo jeito estranho. Fizera aquilo de forma tão fria e mecânica que acabei me questionando se haveria realmente alguém por trás daqueles olhos. Dentro do terminal, dez ou doze pessoas esperavam seus ônibus, a maioria delas aparentemente distraídas. Algumas mexiam em seus celulares, outras assistiam ao telejornal noturno na grande TV pendurada em uma das vigas de aço, outras apenas aguardavam de pé, com as mãos enfiadas nos bolsos de seus casacos para se protegerem do frio cortante. Um homem de uns cinquenta anos lia seu jornal, completamente compenetrado, acomodado sobre um dos muitos bancos escuros de madeira que se espalhavam pelas linhas da plataforma. Um casal muito jovem se beijava com gosto. Mas duas mulheres de meia idade, sentadas em lados opostos do terminal, voltaram suas faces em minha direção no momento em que passei pela roleta e não tiraram mais os olhos de mim. Fizeram aquilo de forma tão instantânea e coordenada que me causaram um sobressalto. Eu tentei ignorar aquilo o quanto pude e simplesmente aguardei pelo ônibus. Um militar alto e magro, que havia acabado de passar pela roleta, também me encarou daquele mesmo jeito mecânico. Não seguiu viagem, não continuou andando. Ficou ali, parado, com os olhos cravados em mim. Uma garota bonita com uma mochila do curso de direito da universidade fez o mesmo. Estava bem ao meu lado, na fila de embarque, e eu tive de lutar para disfarçar o incômodo.


O ônibus enfim chegou, vomitou uma leva de passageiros e engoliu os que aguardavam. Achei que dentro do veículo as coisas seriam diferentes, mas me enganei. Mal entrei, e quatro ou cinco pessoas giraram seus pescoços em minha direção. Mais uma vez, tentei ignorar, mas já estava suando frio. Fiquei de pé, preparado para correr se fosse preciso. Faltava pouco para aquelas pessoas me atacarem, eu tinha certeza.


Meu telefone celular tocou. Eu atendi. O homem desconhecido voltou a falar comigo:


—À direita: calça jeans preta, casaco xadrez, gorro preto. Sou eu. Disfarce!


Havia realmente um homem ao celular, nos fundos do ônibus, bastante afastado dos outros passageiros, que batia com a descrição. Eu o analisei discretamente, tentando não chamar muita atenção. Aquele sujeito não me era estranho.


Alguns passageiros seguiam viagem distraídos, com os olhos fixos em seus aparelhos celulares, mas eram a minoria. A maioria ali agia daquele mesmo jeito estranho, encarando-me daquela forma mecânica e perigosa, como se não houvesse nada por trás de seus olhos. O ônibus já havia passado por umas três paradas, e ninguém havia descido. Estavam ocupados demais me vigiando, ao que parecia.


—Saltamos aqui. —sussurrou o homem ao telefone. —Quando saltarmos, não ande em minha direção, não fale comigo, nem olhe para mim. Apenas entre na outra parada e aguarde o ônibus de volta.


—Por quê? –eu ainda perguntei.


—Apenas faça!


Ele desligou. Eu obedeci. Estava realmente assustado agora. Descemos na parada seguinte e apenas aguardamos o ônibus que retornaria ao terminal. Havia uma mulher ali, mas ela nos ignorou, compenetrada em uma conversa no celular. Olhei de relance para o homem que falara comigo ao telefone e, só então, o reconheci. Era o sujeito tampinha no qual eu havia trombado no mercado, no final da tarde. Isso explicava como o bilhete havia parado no meu bolso, mas não explicava muito mais.


Dois minutos depois, pegamos o ônibus de volta. Aquele era o último da noite e estava quase vazio. As poucas pessoas em seus assentos pereciam cansadas e distraídas, e ninguém me percebeu ali. Foi o que pensei no início, mas, quando olhei para a frente do veículo, percebi que o motorista do ônibus me encarava atentamente pelo retrovisor. Eu já não conseguia disfarçar o incômodo. Aliás, eu não fazia a menor ideia de como o motorista conseguia dirigir daquele jeito, com os olhos grudados no espelho, sem olhar nenhuma vez para estrada, mas ele conseguia.


Finalmente o ônibus parou. O homem desconhecido saltou novamente, já dentro do terminal, e seguiu seu caminho. Eu o seguia a distância. Descemos as escadas, entramos no túnel e saímos bem no centro da cidade. Atravessamos o calçadão, cortamos por uma rua mais estreita, depois por uma viela, até nos depararmos com um prédio baixo e velho coberto por azulejos de um tom marrom encardido. No primeiro andar, uma placa identificava uma agência dos correios.


O homem abriu a porta do prédio e me convidou a entrar com um gesto discreto. Eu obedeci. Ia dizer algo, mas ele me fez um sinal de silêncio. Ainda não era hora de falar, ao que parecia. Subimos três lances de escada e paramos diante de um dos apartamentos. Ele entrou. Eu o acompanhei. Na sequência, a porta foi fechada e trancada com tantas travas e fechaduras que cheguei a perder a conta. Só então o sujeito acendeu a luz.

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Aquilo era, certamente, muito estranho: o teto e as paredes do apartamento estavam cobertos de papel-alumínio, mais de uma camada, pelo que pude perceber. Era como estar dentro de uma daquelas embalagens de barras de chocolate. O lugar até pareceria um apartamento normal se não fosse por aquele detalhe e pela quase total ausência de mobília. Imaginei se tratar de algum tipo de reforma, por isso ignorei.

O homem olhou para mim. Era franzino, baixo e muito pálido. Parecia não ver a luz do sol há séculos.

—Você não faz ideia do perigo que está correndo, faz? —perguntou ele.

—Aquelas pessoas lá fora estavam me vigiando? —perguntei.

--Vigiando você? Não, eles estão vigiando todo mundo, o tempo todo

Eu não estava entendendo absolutamente nada.

—Eles estão aqui há muito tempo, mas nunca estiveram tão confiantes, nunca em tanta quantidade.

 Pode ser o fim do nosso mundo. Essa é a verdade.

—Eles? –eu perguntei, completamente confuso. —Quem são eles: espiões, terroristas?

O sujeito balançou a cabeça, um tanto desanimado.

—Não, você ainda não entendeu.

—Entender o quê?

—Sabia que existem mais estrelas em nosso universo que grãos de areia em todo o nosso planeta? Imagine cada grão de areia, cada mísero grão de areia, então multiplique tudo por mil. Mundos incontáveis, espalhados pela escuridão de um espaço infinito. Mais cedo ou mais tarde, isso iria acabar acontecendo.

—Mais o que isso tudo tem a ver com aquelas pessoas? —eu perguntei.

Levei alguns segundos para perceber do que o homem estava falando, mas finalmente compreendi. Eu estava diante de um lunático.

—Você quer dizer "alienígenas"? —perguntei, já com uma boa dose de sarcasmo na voz.

Falar em fantasmas, em demônios, em mulas-sem-cabeça, qualquer coisa era melhor do que falar em alienígenas. E pouco importava se a probabilidade de uma invasão de outro planeta era cientificamente viável, em termos matemáticos pelo menos, a ideia era ridícula, e ponto final. Aliás, eu estava achando aquilo tudo bastante engraçado agora. Cheguei a me esquecer, por alguns minutos, dos acontecimentos estranhos daquela noite. O maluco ignorou meu sarcasmo, talvez nem tenha percebido, e continuou:

—Há milhares deles, só nesta cidade. E estão aumentando seu número de forma assombrosa. Em alguns meses, podem ser milhões ou dezenas de milhões, então não haverá mais saída. Estaremos condenados. Eles são muito mais rápidos do que nós, muito mais fortes do que nós e, o pior de tudo, muito mais inteligentes. E eles não morrem, pelo menos não como nós morremos. São quase imortais. Eles roubam nossos corpos, nossa aparência, tragam nossas lembranças, boa parte de nossa personalidade, então nos matam e nos substituem. Estão fazendo isso há um bom tempo.

Eu resolvi mergulhar na paranoia daquele homem. Cheguei a achar engraçado. Apontei para o papel-alumínio no teto e na parede e perguntei:

—Então, isso tudo é para se esconder?

—Ao contrário do que o senso comum acredita, a tecnologia deles não é muito mais avançada do que a nossa. Talvez utilizem apenas a nossa tecnologia, por alguma razão. O fato é que não é difícil se esconder. Eles têm dificuldade para rastrear sinais de rádio e telefone, mas podem fazê-lo se tiverem algum tempo. Então é preciso estar sempre em movimento, para não ser detectado. E, o pior, eles podem ouvir nossas conversas mesmo em lugares fechados, como casas e carros, mesmo quando pensamos estar seguros. Não sei como, mas eles podem. Mas basta uma fina camada de papel-alumínio ou espelhos para barrar isso.

—Eles podem ouvir nossas vozes? —perguntei, imaginando se o sujeito não percebia o quanto aquilo soava estranho. —E eles se parecem conosco?

—Não, eles não se parecem conosco. Você precisa entender: eles não são como nós, não são indivíduos, ou seres individuais. Na verdade, são parecidos com fungos, seres coletivos, compartilham uma mesma vida e, por mais estranho que isso possa soar, até um mesmo pensamento. Se você for pego por um, será pego por todos. Eles são difíceis de despistar e, acredite, eles nunca dormem. Há uma única fraqueza: eles têm dificuldade para compreender os aspectos mais sutis de nossa linguagem, são ruins com metáforas, ruins com ironias e, principalmente, com mentiras. Mentir é a forma mais fácil de despistá-los.

—Então, todas aquelas pessoas lá fora foram substituídas por alienígenas? —perguntei, sem conseguir disfarçar o quão idiota aquela ideia parecia. —Todas elas?

—Você não acredita em mim. —percebeu o sujeito. —Eu já imaginava isso. Deixe-me mostrar algo.

Nós caminhamos até um segundo cômodo. Aquele tinha ainda menos móveis que o primeiro, apenas uma pequena estante sobre a qual repousava um aparelho velho de TV e, acreditem, um videocassete. O mesmo tipo de papel alumínio cobria tudo por ali também. O sujeito maluco apanhou uma fita e a colocou no tocador.

 

—Aconteceu comigo também. —ele afirmou. —Minha esposa começou a agir de forma estranha, fria. Eu não percebi à primeira vista, mas acabei descobrindo. Foi tarde demais para mim. Para você, ainda não é.

 

O aparelho começou a rodar. Uma imagem surgiu na tela: parecia a área de serviço de uma casa muito grande. Tratava-se de um cômodo espaçoso e aberto. Era possível visualizar até mesmo um amontoado de árvores e arbustos do lado de fora da casa. Dentro do cômodo, uma máquina de lavar, uma secadora e alguns varais de corda. A luz do dia ainda estava se acendendo, era possível perceber, mas seria um dia bastante ensolarado. A filmagem, em si, tinha uma aparência relativamente antiga, quinze anos ou mais.

No vídeo, um cãozinho latia de forma alucinada. Parecia um filhote de labrador. Ainda estava longe de se tornar um adulto, era possível perceber pelo latido esganiçado, mas já era consideravelmente grande. E estava muito irritado com algo. Uma mulher surgiu na imagem no momento seguinte. Era loira e magra. Vestia-se com roupas de usar em casa: calça de moletom, camiseta de manga e um par de chinelos de borracha. Como estava quase de costas para a filmagem, era impossível dizer se era bonita. A pessoa que segurava a câmera tremia bastante, como se estivesse nervosa ou com muito medo.

Na televisão, a mulher se aproximou do cão. O animalzinho ficou ainda mais irritado. Parecia querer atacar, mas o medo quase o paralisava.

—O metabolismo deles é diferente do nosso. —afirmou o homem, ao meu lado, apontando para a televisão. –Diferente de tudo o que existe neste mundo.

Na fita, a mulher parecia cercar lentamente o cão acuado, como um predador espremendo sua presa contra um muro. O animalzinho não conseguia fugir.

—Como assim? —eu perguntei.

—Nós nos alimentamos de muitas coisas, temos muitas possibilidades. Eles não. Eles precisam se alimentar de coisas vivas. A comida precisa ser devorada ainda com vida, ou eles podem morrer de fome, literalmente.

A mulher no vídeo se ajoelhou em frente ao cãozinho. O animal ainda tentou se proteger, tentou se espremer contra a parede, tentou morder, tudo em vão. Então algo estranho aconteceu: a mulher apenas encarou a criaturinha indefesa a sua frente por alguns segundos, e o animal estacou, estático como uma pedra. Parecia em transe agora, um transe profundo e pesado, e ficou daquele jeito por longos segundos, como uma estátua.

O que aconteceu em seguida foi horripilante. Inicialmente, a mulher apenas conferiu tudo a sua volta, olhou para os dois lados, depois para trás. A pessoa que fazia a filmagem chegou a afastar a câmera, num sobressalto, mas voltou a se posicionar no instante seguinte. Naquele momento, foi possível perceber que a câmera de vídeo gravava a cena através de um pequeno buraco na parede de um cômodo apertado, provavelmente uma espécie de despensa. A mulher certamente não havia percebido a filmagem: estava distraída demais com o cão.

Todo o resto aconteceu muito rápido. A mulher estranha agarrou o animalzinho com as duas mãos. O bicho nem piscou. Os dois ainda se observaram por um momento. Então, em um movimento brusco e muito ágil, a mulher abriu uma boca simplesmente enorme e mordeu o animal. O cãozinho despertou do transe e começou a gritar e a se sacudir violentamente, mas seu corpo já estava quase todo preso naquela mordida poderosa. A mulher então apenas aspirou lentamente o animal indefeso, como uma serpente esfomeada engolindo um camundongo, até que nada sobrou do pobre bicho. Tudo aquilo não durara mais que poucos minutos.

Eu não podia acreditar no que via. Era certamente apenas mais um daqueles vídeos malucos que circulavam na internet. Era real demais, é verdade, melhor que muitas produções hollywoodianas de segunda classe, mas não poderia ser outra coisa. Ou poderia?

Na filmagem, a mulher partiu. Segundos depois, o cameraman voltou a lente para seu próprio rosto. Quem estava na TV agora era exatamente o mesmo homem que eu via a minha frente, só que alguns anos mais jovem e bem mais gordo. Seus cabelos ainda não haviam se tornado grisalhos.

—Acreditem!... —sussurrou ele, para a câmera. —Acreditem!... Eles estão entre nós... Eles estão nos consumindo... Eles...

Na televisão, tudo ficou escuro.

 

Eu estava pasmo, quase em choque. Não, aquilo tudo não podia ser verdade.

—É assim que eles são. —afirmou o sujeito.

—Isso é mentira! —eu retruquei.

—Acredite, eu queria muito que tudo isso fosse um engano, mas não é.

Ele apontou para a televisão.

—Minha esposa... Eu não percebi. Eu era como você: sempre preocupado com coisas fúteis: o carro do ano, a casa perfeita, o terno mais caro. Eu não percebi quando ela foi substituída. Nem faço ideia de quanto tempo compartilhei o mesmo teto com aquela coisa nojenta, quantas vezes dormi ao lado dela, quantas vezes fiz sexo com ela. Até que minha filha desapareceu...

Eu estava prestando mais atenção agora. Mais do que isso, estava realmente assustado. Já não conseguia disfarçar o incômodo. O sujeito continuou.

—Minha menina tinha acabado de completar um ano. Aquela coisa nem conseguiu disfarçar a indiferença, a frieza. Os policiais que investigaram o desaparecimento pensaram que minha esposa estava em choque. Todos pensavam. Mas aquela coisa não conseguiu mais me enganar.

Havia uma tristeza cortante na voz daquele homem. Não era fingimento. Ou aquilo tudo era verdade, ou ele estava realmente muito louco.

—Isso não faz sentido. —eu afirmei. —Se isso fosse verdade, por que eles estariam aqui? Por que abandonariam seu planeta e viajariam pelo espaço?

—Você ouviu o que eu falei? Você viu o vídeo: eles precisam se alimentar de coisas vivas. E encontraram um planeta com oito bilhões de habitantes.

—Então, eles vieram até nosso planeta para nos devorar?

—Nos devorar? A nós? Não. Somos grandes demais para eles devorarem.

Eu demorei para entender a insinuação. Então, instintivamente, comecei a rir, um riso idiota e amedrontado.

--Não... Não... Você é um louco!

--Somos um grande criadouro. —ele concluiu. —Eu usei aquele cão como uma isca para apanhar aquela coisa, mas eles preferem nossas crianças, são mais saborosas para eles.

—Você é maluco!

—Eu postei meu vídeo na internet, divulguei-o em algumas emissoras de TV na época. O vídeo nunca ficava no ar por mais de alguns minutos. Eles sempre davam um jeito. Poucas pessoas assistiram ao vídeo. Obviamente, quase todos que assistiram acharam que eu era um charlatão, mas acabei encontrando pessoas que também conheciam a verdade, pessoas que me ajudaram a sobreviver, que me ensinaram muitas coisas. Éramos muitos no começo, centenas de nós, mas todos os outros estão mortos ou desaparecidos agora. Eles estão nos pegando, um a um.

—Por que está me dizendo essas coisas?

—Não me envolvo com eles há um bom tempo. Geralmente, eu apenas os deixo em paz, e eles fazem o mesmo. Mas vi sua esposa no mercado. Quando percebi que você tinha um filho, não consegui deixar de avisá-lo.

—Minha esposa? —eu perguntei. —Você quer dizer...

—Ela é um deles. Não sei há quanto tempo, mas ela é. Salve seu filho! Corra para casa e não o deixe mais sozinho com aquela coisa monstruosa! Nunca mais! Fuja! Fuja para bem longe!

Eu estava realmente indignado agora.

—Maluco... Acha que eu não perceberia se minha esposa não fosse ela?

—Você perceberia? –perguntou o sujeito.

Eu suspendi a resposta. Era claro que eu perceberia.... Não perceberia? Minha esposa era especial, mas o que a fazia tão especial? Eu já não recordava. Ela não havia mudado naqueles anos todos, eu sim.

O sujeito continuou:

—Preste atenção, daqui para frente: todos os hábitos nojentos, o muco escuro pela casa, o bolor que começou a brotar nos cantos úmidos, os ruídos... Essas coisas se controlam muito bem, mas às vezes aqueles sons escapam, então você percebe que eles não são humanos. E há a frieza. Eles não têm sentimentos, nem conseguem entender o que a palavra significa. Você vai perceber. Acredite, você vai...

—Cale-se! —eu gritei. —Mentiroso! Seu maluco infeliz!

—Escute... —tentou dizer o sujeito, mas eu não lhe dei chance de continuar. Acertei-lhe um tapa muito forte, com as costas de minha mão esquerda, e mandei o homenzinho à lona. Ele não desmaiou, mas chegou perto. Estava no chão, completamente tonto.

—Afaste-se de mim! —gritei, já um pouco mais calmo, e parti.

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