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Atravessei o centro da cidade muito rapidamente e cheguei até meu carro. Estava tão irritado que já nem sentia o frio. Liguei o motor e parti. Em dez minutos, estava em casa. Nada do que acontecera minutos antes voltara a acontecer: ninguém me espionava, ninguém me seguia. Eu havia fantasiado, era a única explicação plausível.

Mergulhei em minha garagem e estacionei cuidadosamente ao lado do carro de minha esposa. A casa estava em completo silêncio. Ninguém na sala, ninguém na cozinha. Abri a porta da geladeira, enchi um copo de água e o sorvi como se fosse ar. Estava morto de sede e nem me dera conta. Sentia fome também, uma fome profunda e afiada, mas só de pensar em comida tive vontade de vomitar.

Subi para o quarto do bebê. Era um cômodo bonito, azul, cheio daqueles penduricalhos de crianças e de desenhos na parede. Fazia tempo que não entrava naquele quarto. Naquele momento, eu seria até mesmo capaz de jurar que nunca havia estado ali, mas era óbvio que estava enganado. Tinha de estar. Ainda assim, o lugar me parecia completamente estranho.

E ali estava meu menino, de pé sobre o colchão, agarrado às grades do berço como um criminozinho de dez meses em uma cela. Até o pijaminha azul listrado aumentava o efeito. E não era exatamente para isso que serviam os berços, para os pais poderem manter as crianças presas e seguras. Meu filho saltitava. Já passava das duas da manhã, e seus olhos permaneciam em absoluto alerta. Não havia nem indício de sono. Eu me aproximei e o observei atentamente. Ele era a coisa mais preciosa naquela casa. Sempre fora. Como alguém poderia pensar em... Não, não fazia sentido.

—O que está fazendo aqui? —perguntou minha esposa.

Ela estava ali também, perto da janela, no escuro. Mesmo depois de ouvir sua voz, quase não a distingui na penumbra, até que ela caminhou em minha direção. Eu a via com nitidez agora: a camisola branca caía sobre o corpo magro e firme. Linda, era essa a melhor palavra. Parecia um anjo, uma criatura de outro mundo. Como eu era idiota.

—Só passei para dar boa noite para ele. —afirmei eu.

—Por quê? –ela perguntou.

Eu sorri.

—Preciso de um motivo?

—Não. Claro que não. Você é o dono da casa.

—Achei que você iria gostar de me ver aqui, com ele.

—E por que eu iria gostar?

—Não sei, eu só achei que iria.

—Vamos deixá-lo dormir!

Ela caminhou até nosso quarto. Eu a segui. Na meia hora seguinte, tomei uma ducha, coloquei meu pijama e escovei meus dentes. Até a água da torneira parecia ferir meu estômago agora. E havia aquele enjoo intenso, que bem poderia ser apenas fome. Eu me deitei e tentei fechar os olhos. Minha esposa permaneceu de pé, no escuro, diante da janela, observando o lado de fora através do vidro.

—Você não vem dormir? –eu perguntei.

—Eu já vou... Pode descansar. Você deve estar exausto.

Não, a verdade era que eu não estava. A agitação daquele dia me tragara qualquer sono, qualquer cansaço. Minha esposa continuava ali, de pé, na mesma posição. Observava a rua como se houvesse algo extremamente importante no lado de fora. Então me surpreendeu com uma pergunta inusitada:

—Por que você entrou naquele ônibus?

—O quê?

—Você entrou em um ônibus hoje, mas não foi a lugar algum. Por quê?

—Como você sabe que eu peguei um ônibus?

—Não importa! Por que... você pegou... aquele ônibus?

A pergunta soou pausada e tinha um quê de ameaça, algo muito sutil, é verdade, mas perceptível. Eu tentei relembrar meus movimentos daquela noite e bolei a melhor mentira na qual consegui pensar. Cheguei a cogitar contar a história real, mas seria ainda mais trabalhoso.

—Eu estava indo ver um cliente importante. Ficamos de nos encontrar no ônibus, mas o cliente me ligou para desmarcar, então voltei para casa.

—Um cliente, em um ônibus, quase à uma da manhã?

—Sim. Um cliente importante.

—Entendi.

Ela não pareceu muito satisfeita com a resposta, mas percebi que acabou acreditando.

—Mas você ainda não me respondeu: como sabe que eu peguei um ônibus hoje?

—Uma amiga viu você no terminal e me ligou.

A resposta dela soou como a mais absoluta mentira. Mas por que minha esposa mentiria, afinal? E como ela saberia dos meus passos? Era mais fácil acreditar naquilo do que acreditar que... Não, não havia outra possibilidade. Aquela loucura precisava acabar.        

 

—Minha amiga achou que você estava me enganando. Você não está me enganando, está?

—Claro que não. —respondi, e consegui soar sincero, até porque era a mais absoluta verdade.

Eu me virei de costas para a janela e me cobri. O quarto estava bastante quente, mas eu me sentia desprotegido sem aquele cobertor sobre meu corpo. Era como um casulo de pelos me protegendo de qualquer predador faminto, como uma toca escavada em um tronco a centenas de metros do chão. E, por alguma razão, eu não conseguia parar de pensar em predadores e bestas, animais famintos e ferozes cheios de dentes e garras.

Permanecemos vários minutos ali, eu e minha esposa, no mais absoluto silêncio. Ela me chamou. Eu fingi estar dormindo. Mas a verdade era que não havia como dormir depois de tudo pelo que eu havia passado naquele dia, então apenas fiquei ali, completamente desperto, olhando para a parede do quarto. Podia ver o despertador de onde estava. Os ponteiros deslizaram vagarosamente durante toda a noite. Quando dei por mim, já passava das seis da manhã. A claridade do dia já invadia o quarto.

Minha esposa passara a noite toda na janela, de pé, como um pássaro empoleirado. Aquilo era certamente muito estranho, mas não significava que... Não, era impossível. Às seis e meia, ela desceu. Eu fiquei na cama até as sete e quinze. Minha cabeça fervia. Minha vida precisava voltar a ser o que sempre fora, uma vida perfeita, por isso eu precisava apagar o dia anterior da minha mente.

Só quando o sol já começava a acariciar as cortinas, foi que realmente senti sono, um sono profundo e pesado, que se abateu sobre mim de forma repentina. Em poucos segundos, já era impossível manter meus olhos abertos. Eu os fechei pelo que pareceram muitas horas.

 

Durante todo aquele tempo, tive uma dúzia de pesadelos. Um deles foi diferente, mais pesado e mais vivo que os outros. Eu enforcava um homem com minhas próprias mãos. O sujeito agonizava e se debatia debaixo de mim, mas não conseguia se libertar. Eu sentia sua vida se esvaindo, sentia em minhas mãos, nas pontas de meus dedos. A sensação era agradável, fazia meu coração bater mais forte. Era noite, e estávamos em algum lugar escuro, por isso era impossível distinguir seu rosto com clareza. Tratava-se certamente de um lugar extremamente abandonado, já que eu não conseguia avistar nenhuma testemunha por perto, com exceção de alguns ratos e baratas que se arrastavam pelas sombras. Contudo, era possível distinguir um movimento intenso de carros e caminhões bem acima de onde nos encontrávamos. Estávamos, certamente, debaixo de algum viaduto ou ponte bastante movimentada. Mas ali, nas sombras, só havia podridão. Meus joelhos nus esmagavam lodo, restos de comida e sacos de lixo.

O coração do sujeito pulsou uma última vez. O homem deu um último grunhido abafado, então se calou definitivamente. Os faróis de um veículo passageiro estavam prestes a iluminar seu rosto. Então despertei.

 

Fora um sonho incrivelmente real. Mas tratava-se apenas disso, um sonho. Eu nunca havia matado alguém em toda a minha vida, disso eu tinha absoluta certeza, e a ideia nunca nem ao menos me passara pela cabeça. Meu único pecado era ser um marido perfeito. Além disso, eu não era um homem violento, e o prazer com a morte de um ser humano não combinava comigo. O prazer em humilhar as pessoas, em fazê-las se sentirem inferiores, isso sim era muito mais a minha cara. Eu era um cretino, tinha de admitir, mas não um assassino. Enfim, era apenas um sonho, tinha de ser.

Ao abrir os olhos, eu já me encontrava disposto novamente, como se tivesse dormido por muitas e muitas horas. Quanto tempo haveria se passado, eu me questionava. O relógio ainda não havia tocado, por isso eu sabia que não passava das nove da manhã. Que surpresa eu tive quando conferi os ponteiros e descobri que não havia fechado meus olhos nem sequer por trinta segundos. Como era possível, eu não sabia, mas meu corpo se recusava a permanecer na cama.

Eu me levantei num salto, como um velocista que ouve o tiro do revólver. Conferi o quarto do bebê, mas ele já não estava ali. Uma sensação de desespero chegou a se apossar de mim, mas eu a afastei rapidamente. Não, eu não podia entrar naquela paranoia. Suspirei fundo e desci tranquilamente para o desjejum.

Lá estava a mesa posta: café, geleia, pães novinhos e queijo branco. Havia um bilhete sobre a mesa. Dizia apenas: "Fui à creche, mas já volto. Te amamos!". Minha esposa desenhara até um coração no papel. Ela sempre fora boa com detalhes. Eu era um idiota, tive de reconhecer. Estava atrasado para o trabalho, mas não me preocupei. Eu já fazia meus próprios horários há alguns anos. Era uma das vantagens de ser gerente, quase ninguém para pegar no seu pé. Então resolvi esperar minha esposa para conversarmos. Eu já estava até decidido a contar o que aquele sujeito louco havia dito na noite anterior. Nós poderíamos rir um pouco juntos.

Fazia um dia lindo do lado de fora, então resolvi abrir as cortinas. Eu não fazia muita coisa naquela casa, e aquilo era realmente pouco, mas era uma ajuda de qualquer forma. Abri as janelas da cozinha, da sala de estar, da sala de jantar, do escritório, dos dois quartos de hóspedes e de nossa suíte. Quando abri a janela do quarto do bebê, acabei pisando em algo estranho. Estava ali, debaixo da janela, bem no lugar onde eu havia encontrado minha esposa na noite anterior. Era uma espécie de gosma escura. Eu me abaixei para analisar melhor o negócio estranho: parecia epiderme morta, como se uma lagartixa tivesse trocado de pele ali, bem debaixo da janela. O sujeito da noite anterior havia falado algo a respeito: muco, ele dissera. Aquilo não era exatamente muco, parecia quase uma gelatina, mas se encaixava vagamente no que ele havia descrito.

Voltei ao andar de baixo, como se nada tivesse acontecido, mas estava realmente preocupado agora. Aquilo não era quase nada, na verdade, mas eu precisava de uma explicação. Tinha de haver alguma explicação. Foi quando me lembrei de meu filho.

 

Uma sensação estranha percorreu minha espinha, uma preocupação pesada, intuitiva. Eu corri para a creche. Dirigi alucinadamente, com muita pressa. Estava desesperado. Quase atropelei um pedestre na faixa. O sujeito mal percebeu o fato, tão compenetrado estava em seu celular. Havia outros como ele em toda a parte, uma infinidade de seres presos a suas minúsculas telas, como se suas vidas estivessem todas dentro de seus aparelhos, e não do lado de fora.

O sinal abriu. Eu precisava encontrar a escola. Conhecia mais ou menos a direção, mas lembrei que nunca havia levado meu filho. Nem me recordei do caminho exato e demorei para relembrar até mesmo do nome do lugar. Quase meia hora depois, no entanto, ali estava eu.

A creche ficava em uma rua lajotada, estreita e cravejada de árvores, nos fundos de um supermercado. Era um lugar bonito e conseguia até mesmo parecer tranquilo, apesar de se localizar quase no centro da cidade. A escola, em si, não passava de uma casa branca e azul de madeira de um único andar com um puxado de alvenaria nos fundos. Não era um lugar bonito, mas parecia confortável à primeira vista.

Toquei o interfone e esperei alguém me atender. Uma senhora de meia-idade, meio gordinha, com um cabelo Chanel engraçado, apareceu no portão logo depois. Estava um tanto curiosa, também um pouco preocupada.

—Pois não, senhor? —ela perguntou.

—Eu vim ver meu filho. Estou preocupado.

—Eu não conheço o senhor, tenho certeza.

—Eu sei... Eu sei... É sempre minha esposa que traz nosso menino, mas...

Algumas professoras traziam um grupo de crianças para fora, para brincar no parquinho. Meu filho estava ali, com mais meia-dúzia do tamanho dele.

—É ele! —exclamei, apontando o dedo. —É ele! Graças a Deus, ele está bem!

A mulher sorriu.

—Ah, então é o senhor. É bom finalmente conhecê-lo. Seu filho estuda conosco há uns seis meses, e nós nunca nos conhecemos. Quer entrar para conferir?

—Não. –respondi, ainda ofegante. —Não, tudo bem.

Achei que devia uma explicação, então inventei uma.

—É que eu tive um sonho estranho. É uma bobagem, eu sei, mas...

—Entendi. —afirmou a mulher, complacente. –Não se preocupe. Está tudo bem. Nós sempre nos preocupamos com quem amamos.

—Com quem amamos. —repeti, para mim mesmo, num sussurro.

Eu me acalmei e parti. Estava me achando um idiota agora. Precisava de uma folga, eu sabia, apenas para colocar a cabeça no lugar, então liguei para meu chefe enquanto dirigia novamente para casa.

—Ah, olha só quem fala! —exclamou ele. —Se não é meu gerente de vendas preferido.

—Bom dia, senhor. Eu liguei por que preciso pedir um favor.

—Você não pede, você manda!

—Apareceram algumas coisas urgentes que tenho de resolver. Não é nada sério, mas preciso do dia de folga.

—Você trabalha como um animal de carga. A folga é sua! Mas, lembre-se, você ganha por comissão: o dinheiro não vai voar para seu bolso sozinho.

Ele soltou uma gargalhada seca, achando muita graça na própria piada, se é que fora mesmo uma piada.

—Eu sei. —respondi. –Compenso amanhã.

—Tudo bem! Compensar é sempre bom. Até amanhã!

Desliguei o telefone e prestei mais atenção às pessoas que cruzavam meu caminho, enquanto o carro deslizava pela avenida. Poucas delas pareciam concentradas em seus afazeres ou no mundo a sua volta. A maior parte daquelas almas vagantes permaneciam completamente compenetradas em seus aparelhos eletrônicos: os dedos que deslizavam pelas telas eram ágeis, todos eles. Nas filas dos terminais de autoatendimento dos bancos, nas mesas das padarias, nas calçadas: poucos conseguiam se desprender daquele mundo diminuto dotado de movimentos ágeis, cores vivas e comunicação instantânea. Algumas daquelas pessoas não tinham o menor problema para caminhar e até mesmo dirigir enquanto teclavam alucinadamente. Que mundo louco era aquele, eu me perguntei por um momento. Como não havia reparado naquilo antes? Provavelmente porque, se não fosse pelo estresse da noite anterior, eu mesmo estaria preso a meu celular, resolvendo meus problemas de negócio, em contato com duas dúzias de clientes e três dezenas de subalternos da agência, todos ao mesmo tempo.

Eu continuava dirigindo, meu corpo alheio guiando o automóvel sem dificuldade, quase como se o veículo tivesse vida própria. Quando dei por mim, já estava muito perto de casa. Estacionei na estrada. Havia pouco movimento naquela manhã. Tudo parecia sossegado. Nossa rua era ampla e sombreada e se localizava em um bairro repleto de casas bonitas e grandes com jardins floridos e gramados verdes. Nossa casa era só mais uma ali. Conferi o relógio do carro: oito e meia.

Toda aquela preocupação me deixara exausto. Minha nuca latejava. Recostei a cabeça no banco e fechei os olhos por alguns segundos, mas despertei assustado. Não, eu não havia despertado de verdade, pois o relógio do carro deixava claro que eu nem havia adormecido. Foram dez segundos, ou menos. Não houve sono, mas eu me recordava vagamente daquele mesmo sonho: eu enforcava um homem, com minhas próprias mãos. Por que eu faria isso? E quem seria aquele sujeito? Aquilo tudo agora me assustava de verdade, como uma recordação que não era minha. Contudo, ao menos o cansaço havia se dissipado novamente, como que em um passe de mágica.

Eu saltei do carro. Minha esposa estava ali, na janela de nosso quarto, no terceiro andar da casa, observando o lado de fora. Não se movia. Aparentemente, nem piscava. Eu acenei para ela. Ela não retribuiu o gesto, apenas me observou com aqueles olhos sem expressão. Caminhei alguns passos, girei a maçaneta e entrei. Acabei dando de cara com minha esposa na entrada da casa. Ela estava no andar de cima, isso eu podia jurar. Como ela havia descido tão rápido? Talvez eu é que estivesse meio lento naquela manhã.

—O que está fazendo aqui? –perguntou ela.

—Eu tirei o dia de folga.

—Por quê?

—Eu estava cansado. Fiquei acordado até tarde, você sabe.

Ela permaneceu ali, parada, por um longo tempo. Não disse nada, não moveu um músculo.

—Tudo bem? —perguntei.

—Estou faminta.

—Nós fizemos compras ontem. Deve ter alguma coisa para você comer.

Ela tentou sorrir. O resultado foi um tremor nervoso no canto dos lábios.

—Estou com vontade de comer outra coisa. Vou sair para comprar algo.

—Tudo bem.

Ela partiu com muita pressa. Eu subi para o quarto de nosso filho assim que minha esposa passou pela porta, mas não encontrei nada. O que quer que fosse aquilo no chão, ela já havia limpado. As cortinas estavam abertas, e a luz do sol acariciava delicadamente as paredes azuis. A brisa leve da manhã agitava os sininhos de brinquedo pendurados no berço. Era um quarto bonito, um refúgio.

Tudo parecia realmente normal, mas eu ainda não estava convencido. Vasculhei a cozinha e todos os cômodos, mas não encontrei nada. Já estava me convencendo de que tudo não passara de uma alucinação quando me deparei com o lixo do banheiro cheio daquele mesmo tipo de pele morta. Era a pele de um ser escorregadio e escamoso, escamas grandes como as de um crocodilo. O negócio fez meu estômago revirar. E algo me dizia que poderia haver mais.

Corri para a caçamba de lixo no final da rua e comecei a arrebentar as sacolas plásticas como um cão faminto procurando algo para devorar. A velha fofoqueira da última casa da rua abriu a porta e me observou um tanto curiosa, com a cara ainda cheia de creme.

—Eu perdi a carteira! —afirmei. —Acho que coloquei no lixo por engano!

—É, isso acontece! —ela respondeu, nem um pouco convencida, mas aparentemente feliz por ver o vizinho almofadinha com a cara no meio de todo aquele papel higiênico usado e comida podre.

Eu encontrei o que temia. Alguém colocara aqueles sacos de lixo no fundo da caçamba para escondê-los melhor, mas eu os havia descoberto. Eram cinco ou seis deles, repletos da mesma pele morta que eu encontrara no lixo do banheiro, uma quantidade realmente absurda. Eu fiquei ali, estático, sem acreditar. Aquilo não podia estar acontecendo. Mal percebi que a vizinha ainda estava na porta me observando. Tirei a carteira do bolso e a levantei bem alto.

—Encontrei!

—Que bom para você! —ela disse, e voltou para dentro de casa.

Eu parti. Minha casa ainda estava vazia. Vasculhei novamente cada cômodo, sem saber ao certo o que procurar. Encontrei algo no porão: o alicerce da casa estava repleto de fungos, uma quantidade enorme: um bolor verde e brilhante com um aspecto nojento e um cheiro insuportável de carne podre. A coisa escalava as paredes e se espalhava. Subi e vasculhei os cômodos do primeiro andar. Na cozinha, os azulejos não deixavam entrever nada, mas na sala de estar, por baixo de uma falha no papel de parede, eu pude ver o mesmo tipo de bolor.

Subi para o segundo andar e abri pequenas frestas no papel de parede de todos os quartos: a mesma coisa em todos eles, até mesmo no quarto do bebê. Por baixo da camada bonita de papel azul, a casa estava apodrecendo.

Minha esposa só apareceu em casa no meio da tarde. Estava mais enxuta e visivelmente mais saudável do que estivera pela manhã.

—Onde você esteve? —perguntei, assim que ela passou pela porta.

—Comendo. —ela respondeu.

—Esse tempo todo?

—Claro que não.

Ela não disse mais nada e subiu. Eu saí de casa, embarquei em meu carro e dirigi até a esquina, então apenas espionei minha esposa, de longe, por várias horas. Ela ficou ali, o tempo todo, parada na janela de casa como um espectro assustador, acompanhando com os olhos todas as pessoas que passavam por ali. Ela não saiu, não se moveu, nem mesmo piscou.

Às cinco e meia da tarde, eu me adiantei, dirigi até a creche e apenhei nosso filho. A mesma senhora simpática me entregou o menino e trocou algumas frases educadas comigo. A amabilidade daquela mulher era contagiante. Ainda assim, voltei para casa sem saber ao certo o que fazer ou o que pensar.

Coloquei meu filho no cercadinho da sala e liguei um desenho qualquer. Ele parecia distraído com as imagens coloridas. Minha esposa passou pela porta alguns minutos depois e não parecia nada contente.

—Você foi buscar o menino? —perguntou ela.

—Sim. —eu respondi.

—E não achou que deveria me avisar?

—Nem lembrei. Desculpe!

—Você tem agito estranho. —afirmou ela.

—Eu? E quanto a você? Não acha que você também tem agido de forma estranha?

—E há quanto tempo eu tenho agido de forma estranha?

Eu não sabia o que responder.

—Pois eu sei desde quando você está agindo estranho. —afirmou ela. —Desde que saiu de casa no meio da noite ontem.

 

Eu não disse mais nada. Ficamos ali, sentados no sofá, por longas horas. Às sete da noite, minha esposa deu o jantar ao menino. Era algo escuro, vermelho, que cheirava muito bem. Só de pensar em comida, no entanto, meu estômago revirou. Mais ou menos uma hora depois, ela se preparou para levar o menino para o quarto. Eu me adiantei e o agarrei primeiro.

—Deixa comigo!

—Por quê?

—Deixa comigo! —repeti.

—Tudo bem! —concordou ela. —Vai trocar a fralda também?

Ao ouvir a palavra, eu certamente vacilei. Nem sabia como se trocava um bebê e não tinha a menor vontade de descobrir. Minha esposa arrancou o garoto de mim.

—Você está realmente estranho. Pode vir comigo se quiser.

Não, eu fiquei ali, paralisado, e só subi algumas horas depois. Já havia escurecido. Meu filho já estava no berço, vestindo seu pijaminha e saltitando. Era loucura demais. Eu precisava colocar a cabeça no lugar. Caminhei até o quarto para pedir desculpas a minha esposa, mas a encontrei novamente de pé diante da janela aberta. Não fiz qualquer barulho e apenas analisei cada detalhe. A camisola balançava ao vento, mas ela não parecia com frio. Na escuridão do quarto, banhada apenas pela luz opaca das estrelas, ela parecia maior do que era de verdade, maior do que sempre fora, como se as sombras a transformassem em um mostro.

E eu estava realmente pensando em monstros quando ouvi o ruído. Assemelhava-se a um bater de colheres grave e alto, como o barulho de algum réptil muito grande. Vinha de dentro do quarto. Mais especificamente, vinha da janela. Minha esposa foi acometida por um leve tremor, que deve ter durado apenas uns cinco segundos. Depois disso, ela se esticou toda, como que se alongando. Seu corpo pareceu se estender de forma absurda, como uma víbora em pleno bote, e então, repentinamente, voltar ao normal. Tive a nítida impressão de que ela quase tocara o teto durante aquilo. Apenas uma impressão, certamente. O quarto permanecia escuro demais, de qualquer forma, mas percebi que seus dedos ainda não pareciam ter retornado ao tamanho normal: eram adagas longas e afiadas que rasgariam carne com muita facilidade, não havia dúvida. Eu me escondi e permaneci ali uma meia hora, respirando fundo, antes de observar novamente o interior do quarto. Minha mulher ainda estava diante da janela, exatamente no mesmo lugar, mas parecia ter voltado a seu tamanho normal.

Não havia mais nada para se fazer ali, então desci as escadas, me acomodei em uma das poltronas da sala, apaguei as luzes e esperei. Não me sentia confortável para retornar ao quarto. E precisava vigiar, durante toda a noite se fosse preciso. Perto das três horas da manhã, ouvi o estalo suave de uma maçaneta, e a porta de nosso quarto se abriu. Minha esposa surgiu das sombras e escorregou, literalmente, pelo corredor. Seus pés nem pareciam se mover, mas ela avançava muito rápido e leve como uma pluma. Estava diante da porta fechada do quarto do bebê, com a mão na maçaneta, quando eu intervim.

—O que está fazendo? —perguntei.

Minha esposa lançou os dois olhos sobre mim. Eram olhos muito grandes e escuros, mas, quando acendi a luz da sala, eles já haviam retornado ao normal.

—O que está fazendo aí? —ela perguntou.

—Não consigo dormir. E você?

—Só queria conferir como ele está.

—Ele está bem. Eu mesmo acabei de conferir. —menti.

—Nesse caso, não há mais nada a se fazer.

Ela continuou no corredor.

—Algum problema? —eu perguntei.

—Estou com fome.

—Há comida na geladeira. Ou você pode sair mais uma vez para arranjar algo. Não há comida aí dentro. Você sabe disso, não sabe?

—É, eu sei. Vamos deixar para amanhã.

Ela me observou com curiosidade por alguns segundos, então voltou ao quarto. Caminhava de forma mais natural agora, mas seus passos ainda pareciam rápidos demais.

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Na manhã seguinte, nós levantamos cedo. Na verdade, não dormimos. Pelo menos, eu não dormi. Às sete da manhã, minha esposa já havia aprontado o menino e preparado o café. O cheiro da comida quase me fez vomitar. Meu filho, por outro lado, já havia esvaziado uma mamadeira, que naquele momento já se achava largada suja sobre a pia.

Eu observei minha esposa, na sala, enquanto ela dava os últimos retoques nas roupas de nosso filho e penteava os cabelos escuros e finos do menino com gel. Suas mãos eram carinhosas como apenas elas sabiam ser. Era ela novamente. Ao menos, parecia ela.

Naquela manhã, em especial, minha esposa usava um vestido branco que eu sempre adorara. O corpo firme ficava fantástico daquele jeito: a cintura apertada, as panturrilhas torneadas à mostra. Isso sem falar no cabelo escuro e pesado, que acariciava o pescoço e os ombros e deslizava pelas costas. Não havia nem um só vestígio do que acontecera na noite anterior. Ela devorou com gosto uma torrada coberta de geleia, do jeito que sempre gostara, o que por si só me acalmou muito. Tudo voltara ao normal. Mais uma vez, tentei me convencer que o problema era meu. Tinha de ser. Dei-lhes um beijo de despedida e parti aliviado.

Eu tinha de recuperar o trabalho atrasado. Liguei o motor do carro, convencido que precisava realmente dormir mais, dormir de verdade, e acelerei para um novo dia. Já estava na esquina, quando aquela mesma sensação se apossou de meu corpo, um sufocamento que apertava meu peito e se estendia até o estômago. Não, eu não podia fazer aquilo, não podia virar as costas como se nada estivesse acontecendo. Retornei para casa, parei o carro do outro lado da rua e entrei sem fazer um só ruído.

A cena gelou meus ossos. Minha esposa segurava nosso filho pela gola do casaco, com uma das mãos. O menino estava muito perto de sua boca. E eu juro que, à primeira vista, a boca de minha esposa me parecera quatro ou cinco vezes maior que a de um ser humano comum. Meio segundo depois, porém, tudo havia voltado ao normal. Minha esposa já havia soltado o menino sobre o tapete.

—O que você está fazendo em casa? —ela perguntou, bastante irritada.

—Esqueci algo. —eu respondi, e me acomodei no sofá.

Ela me observou sem paciência.

—Então pegue o que esqueceu e volte ao trabalho!

—Eu tenho tempo.

Ela ficou ali, de pé. Não parecia muito contente. E parecia agitada. Só então me dei conta de que ela havia mudado de roupa: vestia calça jeans e camiseta agora. Seu cabelo parecia bem mais despenteado que antes. Não só isso, a roupa do menino também parecia diferente, mas eu não podia ter certeza disso. Como ela havia se trocado tão rápido, e para quê? Ela continuava me encarando com aquela expressão de ódio.

—Algum problema? –eu perguntei.

—Fome. —ela respondeu. —Sempre a maldita fome.

—A mesa ainda está posta. E a geladeira está…

—Não serve!!! —ela grunhiu, e sua voz saiu muito diferente.

Eu a observei assustado, já com lágrimas nos olhos. Então o mesmo som da noite anterior surgiu de dentro de minha esposa quando ela encarou nosso menino com seus olhos de serpente, um som estranho e alto que lembrava vagamente o som de colheres batendo. O som de um réptil muito grande.

—Leve-o à creche! —resmungou ela. —Eu vou encontrar algo para comer!

—Tudo bem! —eu concordei. —Eu o levo.

—E pare de aparecer no meio da manhã. Você tem uma casa para sustentar. Não esqueça disso!

Minha esposa mergulhou na garagem. Segundos depois, o carro dela partiu pela rua estreita. Eu apanhei o menino, atravessei a rua, ajeitei-o sobre a cadeirinha do carro e a segui.

Dirigimos por quase um quilômetro e meio. Minha esposa parou diante de uma pequena loja de animais. Eu a ouvi dizer claramente que estava com fome, então por que eu a via agora deixando o lugar com um filhote felpudo de gato no colo. Mais do que isso, por que minha esposa tinha tanta pressa? Ela manobrou o carro como se um asteroide estivesse prestes a atingir a terra e queimou os pneus na saída.

Depois daquilo, eu cortei a cidade e deixei meu filho em seu destino.  A mulher simpática, que eu descobri ser a dona da escolinha, apanhou o menino com o mesmo sorriso nos lábios, mas pareceu preocupada comigo.

—O senhor está bem? –perguntou ela. —Parece preocupado. E está pálido demais.

—Estou bem. —respondi, e entreguei-lhe meu filho com um aperto no coração. –Apenas um pouco cansado.

—Ele vai ficar bem. —disse ela. —Não se preocupe.

—O quê? —eu perguntei, distraído.

—Vamos cuidar bem dele.

—Ah, eu sei. Não é isso.

—Então, de que se trata?

Eu estava prestes a desabafar com aquela mulher, mas me contive.

—Não é nada. Não precisa ficar preocupada. Até logo!

 

Meia hora depois, eu estava novamente em minha rua. Estacionei o carro bem mais longe agora, e apanhei minha esposa novamente olhando pela janela, assustadora como uma assombração. Eu precisava ter uma conversa séria com ela a respeito daqueles hábitos arrepiantes.

O telefone em meu bolso tocou. Era meu chefe.

—Tudo bem, onde você está? —perguntou ele.

—Em casa? —afirmei.

—Você pediu um dia de folga, não dois. Precisamos de você aqui, agora! Há um cliente...

—Eu não posso falar agora. —respondi. —Ligo quando tiver tempo.

—Não ouse desligar o telefone! —grunhiu meu chefe, mas eu o deixei no vácuo.

Desliguei e suspirei preocupado. Minha vida estava desmoronando. Eu precisava de respostas, o mais rápido possível. Teria uma conversa séria com minha esposa, eu decidi.

 

Atravessei a rua e já me aproximava de casa quando reparei em uma garota magra, que caminhava com muita pressa, alguns metros a minha frente. Ela se movia de cabeça baixa, examinando tudo em volta com olhos discretos. Parecia extremamente preocupada. Vestia-se de forma estranha, a toca do casaco de moletom sobre a cabeça em pleno dia, como se quisesse se disfarçar. Ficava estranha daquele jeito obviamente, e nem um pouco discreta.

A garota parou bem em frente a minha casa e analisou tudo a sua volta mais uma vez. Fosse lá o que a estivesse assustando, aparentemente havia acabado, e ela pareceu respirar aliviada por um instante. Seu corpo se dobrou em dois pelo efeito do cansaço. Ela permaneceu ali por alguns segundos, respirando fundo, então se ajeitou, enxugou o suor da testa e se preparou para partir novamente. Foi quando olhou para cima, exatamente para a janela de meu quarto. Eu estava perto agora e pude ver o rosto da garota se enchendo de pavor quando encarou os olhos de minha esposa. Ela correu e acabou trombando em mim. Um envelope caiu de seu bolso, mas ela nem se deu conta.

—Você mora nessa casa? —perguntou a garota, com o rosto contorcido numa carranca de desespero.

—Sim, eu moro.

—Então, que Deus o ajude!

A garota agora estava correndo de verdade. Eu apanhei o envelope e a segui a passos rápidos. Demorei para perceber, mas não era o único que a estava seguindo. A cada passo, novas pessoas se juntavam àquela perseguição estranha. Quanto mais a garota corria, mais olhos a encaravam, em todas as partes, e a acompanhavam. Eram dezenas e, segundos depois, centenas. Pessoas que alguns segundos antes varriam o chão, entregavam correspondências ou simplesmente caminhavam pela cidade com suas roupas de ginástica agora perseguiam a pobre coitada como predadores famintos. A garota já não conseguiria se ocultar: estava condenada, eu sabia.

As outras pessoas da cidade seguiam suas vidas normalmente. Algumas até estranhavam a forma como a garota assustada corria, mas logo voltavam para suas ocupações como se nada tivesse acontecido. E aparentemente ninguém notava a multidão perseguindo a garota. Seria preciso realmente um olhar mais amplo para perceber a movimentação coordenada daquela multidão dispersa, que crescia a cada segundo. E toda aquela fixação das pessoas por seus aparelhos celulares e equipamentos eletrônicos certamente não ajudava a perceber qualquer coisa.

Os perseguidores continuavam aparecendo, surgiam de todas as direções. Formavam agora um grande círculo assassino, espremendo a garota, até que ela já não podia fugir. Por sorte, não me notaram também, então percebi que a atenção deles realmente não estava em mim naquela manhã. O círculo se apertou ainda mais em torno da garota, que parou de correr e se espremeu contra o prédio cinza de dois pisos de uma agência bancária. Os azulejos espelhados da fachada do edifício refletiam o sol em um brilho negro. Árvores muito altas projetavam suas sombras sobre tudo ali.

Havia agora poucas dezenas de metros entre a garota e seus perseguidores. Não havia mais como fugir. Mas aquelas pessoas estranhas se detiveram ali, como que construindo uma prisão feita de muitos corpos. O número delas realmente impressionava.  Eram dezenas, contando apenas as que cercavam a garota. E havia mais pessoas com aquele olhar mecânico e estranho por toda à parte. Centenas delas, só ali, naquela praça.

—Afastam-se!... —berrou a garota, acuada. —Afastem-se!.. Eu sei o que vocês são!

Algumas pessoas se desprenderam de seus afazeres e observaram tudo aquilo com curiosidade, mas não se atreviam a se aproximar. A mulher parecia uma maluca. Talvez fosse perigosa. Era certamente isso que todos estavam imaginando. Eu me aproximei o máximo que pude, lutando para não atrair a atenção daquele grupo macabro.

Repentinamente, todos os perseguidores se afastaram alguns passos. Fizeram aquilo de forma bastante coordenada. Sirenes se aproximavam. Dois carros de polícia mergulharam na calçada e pararam exatamente entre o círculo de perseguidores e a mulher acuada. Os curiosos estavam mais atentos agora. Quatro policiais saltaram das viaturas e apontaram suas pistolas para a garota.

—Levante as mãos! —berrou um deles.

A garota obedeceu prontamente.

—Agora solte a arma! —ordenou o mesmo policial.

—Que arma? —perguntou a garota, num grito angustiado.

—Senhorita, solte a arma agora! —ordenou mais uma vez o policial. —Ou vamos atirar!

—Eu não tenho nenhuma arma! —gritou a garota. Estava desesperada agora. —Eu não tenho nenhuma arma!

—Eu sei... —retrucou o policial.

Parecia impossível, mas aparentemente ninguém além de mim estava perto o suficiente para ouvir a última frase. Só havia pessoas daquele círculo estranho ali. E os homens nas viaturas dispararam, todos ao mesmo tempo. A mulher foi atingida tantas vezes que cheguei a perder a conta e tombou agonizante, já em seus últimos suspiros. O sangue escorreu pela calçada, formou uma grande poça.

E aquele círculo macabro voltou a se fechar sobre a garota, cada vez mais, até que já era impossível distinguir o corpo ensanguentado no meio da multidão. Eu me aproximei com muito cuidado. Todos naquele grupo lançaram seus olhos vazios sobre a pobre garota e permaneceram ali por algum tempo, até que ela deu seu último suspiro. Então a multidão se despregou daquele transe instantaneamente, e todos voltaram para as suas vidas normais, cada um em sua direção, todos ao mesmo tempo, como um bando de formigas.

Eu disfarcei, fingi ser apenas um curioso e troquei algumas palavras com alguém que passava, apenas para melhorar minha performance. No meio de tudo aquilo, percebi que uma das pessoas daquele círculo jogou uma arma sobre o corpo da garota morta e se foi. Aquele crime hediondo fora apagado. Senti pena daquela pobre coitada, fosse quem fosse. A ambulância do IML já chegava ao local. Ninguém era assim tão rápido. Aquilo tudo havia sido planejado.

 

Eu voltei para casa a passos lentos. Não sabia muito bem o que pensar agora. No caminho de volta, percebi que todos os curiosos que haviam se espantado com a cena estranha já haviam retomado suas respectivas rotinas. E que existências bizarras e enclausurantes eram aquelas. Celulares, celulares, celulares... Olhos e dedos frenéticos. Dentro de um shopping, quatro ou cinco homens de meia-idade admiravam um grande televisor de umas setenta polegadas e pareciam hipnotizados com a coisa. Em uma casa de jogos, uma infinidade de adolescentes trajando roupas estranhas esmagavam os controles dos videogames e os mouses dos computadores em um frenesi assustador, em meio a todo aquele barulho dos infernos. Em um bar, um grande televisor exibia um daqueles reality shows idiotas. Uma pequena multidão de homens adultos se amontoava freneticamente em torno do aparelho: o comentário de um deles causou uma grande discussão, que quase resultou em uma tragédia. Uma adolescente, que caminhava a minha frente, parou para retocar a maquiagem, bem ali, no meio da rua, e resolveu tirar uma selfie. Mal deu dez passos, e resolveu tirar outra. O sorriso que surgia nas fotos desaparecia no instante seguinte, dando lugar a uma leve tristeza e a um semblante cortante de indiferença. Que criaturas eram aquelas? Eu mesmo resolvi conferir meu celular: mil duzentas e setenta e duas mensagem pendentes. E só havia deixado de responder às mensagens durante algumas horas. Como aquilo era possível? 

Finalmente, cheguei a minha casa. Antes de entrar, abri o envelope que havia enfiado no bolso e conferi o que havia nele. Era uma espécie de exame médico ou coisa do tipo, números e siglas em um pedaço de papel. A única coisa que fazia sentido para mim era uma frase solta, no final de uma das folhas: "Tecido Não Identificado". Mas, sem entender o resto, ficava difícil decifrar o que aquilo tudo significava e porque alguém morreria por um pedaço de papel. Aquela coisa era perigosa, eu tinha certeza. Enfiei o envelope novamente no bolso e resolvi pesquisar.

Parei mais uma vez diante de minha casa. Lá estava novamente minha esposa, na janela de nosso quarto, no segundo andar. Daquela vez, não acenei, apenas caminhei até a porta, girei a chave e entrei. E ali estava minha esposa, na entrada da casa, me aguardando. Eu tinha certeza de que não havia levado tanto tempo para entrar, mas ela já estava ali.

—Onde você estava?

Resolvi não mentir.

—Uma mulher foi baleada por alguns policiais aqui perto. Eu estava lá observando. Foi estranho.

—A enxerida deve ter merecido! —afirmou minha esposa.

—Não sei. Ela não me pareceu do tipo violento. Mas disseram que ela estava armada.

Minha esposa estreitou os olhos e inclinou ligeiramente a cabeça. Ficou estranha daquele jeito. Parecia estar tentando ler minha mente ou qualquer coisa do tipo, ou quem sabe estivesse apenas prestando atenção a qualquer sinal de mentira em meu rosto. De qualquer forma, aquilo lhe demandou um grande esforço.

—Vou trabalhar no escritório um pouco. —eu avisei.

—Tudo bem!

Minha esposa estava bem no meio do corredor e não me deu passagem. Tive de virar meu corpo de lado para passar. Ela estava desconfiada de mim. Mas desconfiada de quê? Isso eu não conseguia responder.

Eu realmente queria entender o que aquele envelope significava. Subi para o escritório, liguei o computador e entrei no site da companhia de seguros apenas para disfarçar. Minha cabeça estava pesada. Enquanto a página carregava, fechei os olhos por alguns segundos.

E novamente aquele sonho. Flashes, luzes e vozes se transformaram em faróis, buzinas e no ronco dos motores de muitos carros e caminhões. Estávamos no escuro, nas sombras. Minhas mãos apertavam o pescoço de um homem. Ele lutava, em vão. Sua vida se esvaía em meus dedos, eu podia sentir. As batidas de seu coração se tornaram mais fracas, até que, pouco a pouco, ele morreu.

O farol de um veículo distante iluminou, por um momento, o rosto do sujeito. Era um garoto: vinte e poucos anos, cabelos aparentemente loiros, sobrancelhas espessas, pele clara. Era difícil definir mais alguma coisa debaixo de todo aquele sangue e de todos aqueles hematomas. O sujeito estava realmente ferido. Ainda assim, eu pude perceber, seu rosto não me era estranho, embora aquela expressão de pânico e de dor desmanchasse qualquer certeza. Então a luz do farol voltou a se apagar e tudo escureceu.

 

Eu me sobressaltei.  Novamente, não consegui entender. Aquilo era um sonho. Tinha de ser um sonho, mas era real demais. Eu havia fechado os olhos apenas por alguns segundos. A página do site ainda nem havia carregado completamente. E, o mais estranho, eu me sentia novamente descansado como se tivesse acabado de sair de uma longa noite de sono.

Minha esposa estava parada em frente à minha mesa.

—Vou preparar o almoço. —afirmou ela. —O que você quer?

—Não estou com muita fome, obrigado. —respondi. Era verdade.

Minha esposa não disse mais nada, apenas me abandonou e retornou ao corredor. Eu a observei com muita atenção, não tirei os olhos dela até ela alcançar as escadas, quase quinze metros à frente, então enfiei a mão no bolso do casaco para puxar o envelope que havia guardado. Acabei recolhendo o braço em um movimento reflexo. O susto quase me derrubou da cadeira. Minha esposa estava ali novamente, bem ao meu lado, com o rosto quase colado ao meu. Como ela fazia aquelas coisas?

—Você parece tenso.

Eu forcei um sorriso.

—Você me assustou.

—E por que minha presença o assustaria? —perguntou ela, visivelmente desconfiada, dando uma boa olhada na tela do computador, mas acabou dando de cara com o site da companhia de seguros. Ela ainda não parecia convencida, e me encarou com olhos de desconfiança por um longo tempo, enquanto aquele ruído estranho de réptil escapava entre seus dentes. Eu me encolhi como um rato se escondendo no escuro.

—Tudo bem? —ainda encontrei forças para perguntar, e minha voz saiu esganiçada como a de um passarinho.

—Não sei. O que você me diz?

—Tudo bem, eu acho. Por que não estaria?

—Diga-me uma coisa: quando esteve fora, você por acaso não encontrou algo que pertencia aquela garota, encontrou?

Meu coração palpitou. Fingi surpresa.

—Como assim?

—Algo que ela pode ter perdido.

Meu coração acelerou muito, mas eu tomei coragem.

—Claro que não! Eu nem falei com ela! E de que raios você está falando?

Daquela vez, eu realmente menti muito bem. Minha esposa analisou meu rosto, completamente concentrada. Seu cérebro fervia agora, eu pude perceber. Seus olhos piscavam de forma anormal, e seus lábios tremiam.

—Tudo bem, então… Vou deixar você trabalhar.

Ela partiu. Daquela vez, eu esperei até os passos desaparecerem no andar de baixo, então puxei o envelope e comecei a investigar o que aqueles nomes, aqueles números e aquelas siglas significavam. Levei duas horas naquilo, mas enfim entendia superficialmente aquelas informações. Em resumo, aquele exame indicava uma espécie de DNA, ou algo do tipo. Mais especificamente, pelo que consegui entender, embora não esteja muito certo disso, uma espécie de DNA diferente de tudo o que havia na terra. Essencialmente, DNA sem carbono, se é que algo assim é possível. Embora eu não fizesse a menor ideia do que aquilo significasse na prática, sabia que era grave o suficiente para matar aquela garota. Mas aquilo tudo ultrapassava e muito os meus limites, e eu precisava encontrar alguém para me ajudar a descobrir mais.

Coloquei novamente o envelope no bolso e desci as escadas. Minha esposa estava no sofá, com as pernas cruzadas, folheando uma revista qualquer. Tentava passar uma imagem de tranquilidade, eu pude perceber, mas ficava assustadora daquele jeito.

—Oi. —disse ela.

—Oi. —respondi, tentando disfarçar o medo.

Ela esboçou um sorriso pálido, e aquilo lhe demandou um grande esforço.

—Venha até aqui, com essas perninhas lentas, e sente-se um pouco!

Ela parecia muito grande ali, daquele jeito, muito maior do que eu, muito maior do que qualquer ser humano. Não ousei desobedecer: desci as escadas o mais rápido que consegui. Não queria irritá-la. Ainda assim, minha velocidade pareceu entediá-la um bocado, quase como se eu me movesse em câmera lenta, como um daqueles dançarinos de break. Ela esperou pacientemente até que eu sentasse, então suspirou fundo e me encarou com afeto. Era um afeto fingido, inacreditavelmente forçado, incrivelmente perturbador. E aquele meio sorriso aparentemente havia se petrificado em seus lábios como se seu rosto não passasse de uma máscara de borracha largada sobre o crânio.

—Acho que estou tratando você um pouco mal ultimamente. –disse ela. –Peço desculpa por isso!

—Não, tudo bem. —respondi. —Eu também não fui muito gentil nos últimos dias. É que o trabalho está muito complicado. Acho que acabei descontando em você. Peço desculpas se a feri de alguma forma.

—Ah, acredite, você não seria capaz de me ferir. —respondeu ela, e sorriu de verdade daquela vez. —E, se não se importa, preciso sair agora para arranjar algo para comer.

—Não, tudo bem, pode ir. —respondi.

—Foi bom conversar!

—É… Foi bom.

Minha esposa se levantou e partiu. Eu tirei os olhos dela por meio segundo e, quando dei por mim, ela já havia desaparecido. Só consegui enxergar o vulto no corredor e a porta de entrada batendo logo depois.

Discutir a relação sempre me parecera algo assustador, mas aquilo ultrapassava todos os limites. Fiquei ali, parado, pensando em tudo aquilo. Gastei quase meia hora, na penumbra da sala, mas não conseguia decidir se estava ficando louco ou não. A segunda opção era certamente pior.

Depois que minha esposa partiu, enfiei a mão no bolso do casaco, disposto a destruir aquele envelope perigoso, mas o papel havia desaparecido, eu não sabia como. Meu coração gelou: subi as escadas, vasculhei o escritório, todas as minhas gavetas, todos os cômodos da casa, mas realmente não fazia a menor ideia do que havia acontecido com o envelope, então acabei desistindo e desabando novamente sobre o sofá. Eu estava cansado demais. Minha cabeça latejava. E todos os meus problemas estavam apenas começando.

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