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Às três da tarde, a campainha da casa tocou. Caminhei até a porta e a abri. Havia um homem ali: alto, calvo, com um bigode engraçado. Era um sujeito forte, eu pude perceber, não do tipo que frequenta a academia com regularidade, mas do tipo que parece capaz de esmigalhar um tijolo com os dentes. Ainda assim, não era alguém que assustava. Seu rosto transparecia certa complacência, até certa amabilidade, se bem que também certo sarcasmo. O sujeito ergueu um tipo de identificação, era da polícia ou algo do assim.

—Olá! —disse ele, antes de se apresentar. —Queria fazer umas perguntas sobre um caso antigo, se não se importa.

—Claro que não. —eu respondi. —Pode entrar. Fique à vontade!

Eu esperei o homem entrar. Uma adolescente com o uniforme da escola passou na rua, em frente a minha casa, com os olhos vidrados na tela do celular. Caminhava sem olhar para frente ou para os lados. Seus dedos se moviam freneticamente. Eu a ignorei e fechei a porta.

—Que casa! —exclamou o sujeito, antes de se acomodar sobre o sofá sem ser convidado a fazê-lo.

—Obrigado!

—Mora aqui há muito tempo?

—Uns dez anos… Então, o que posso fazer por você, policial?

—Oh, não sou policial, na verdade. Sou apenas um consultor. Já fui da polícia, mas isso foi há muito tempo. Agora a polícia, de tempos em tempos, nos paga para repassar alguns casos antigos, coisa de rotina.

—Entendo. —respondi, embora não entendesse de verdade o que aquilo significava nem me importasse muito com o fato. –E como eu posso ajudar?

—Bem, se minhas informações estiverem corretas, há cerca de dez anos, o senhor trabalhava para uma agência de seguros, em um prédio cinza claro, quase fora dos limites da cidade.

—Edifício Valis. —eu respondi. —Trabalhei alguns meses lá, antes da minha primeira promoção, então me mudei para outro escritório, um pouco melhor, no centro da cidade.

—O fato é que eu estou entrevistando todos que trabalharam naquele prédio. Foi sorte eu ter encontrado o senhor, eu acho. Um de seus antigos colegas ainda trabalha lá e me indicou seu endereço. Espero que não se importe.

—Não, sem problema.

O sujeito gostava de puxar conversa, eu percebi.

—Então, o que posso realmente fazer para ajudá-lo?

—Vamos por partes: há dez anos, um homem foi assassinado muito perto do prédio onde o senhor trabalhava, em torno das onze horas da noite. Eu estou entrevistando todos os funcionários que trabalharam naquele lugar até mais tarde, naquele exato dia, e sei que o senhor foi um deles.

—Um homem assassinado? Eu nunca fiquei sabendo disso.

—Claro que não. A polícia nunca revelou o fato, não quis assustar as pessoas sem necessidade. O assassinato foi um tanto "violento", para usar um eufemismo. Mas posso adiantar que havia muito sangue na cena do crime.

—E quem era a vítima?

—Parece que nunca vamos saber.

—E por que não?

—Porque o assassino comeu o rosto e os dedos do infeliz depois de matá-lo.

Eu encarei o rosto do homem a minha frente sem acreditar.

—É, eu não estava brincando quando disse que era eufemismo. O relatório da perícia apontava que a vítima era um homem jovem, forte, com uma saúde de ferro, mas o cara foi virado do avesso como um frango, sem conseguir reagir. Eu liguei para a legista que exumou o corpo na época, perguntei se ela tinha alguma dica para mim sobre a identidade de nosso assassino. Sabe o que ela respondeu?

—Não.

—Wolverine...

O sujeito soltou uma gargalhada sem graça. Eu continuava sem acreditar em tudo aquilo.

—É, eu admito que não é muito engraçado. —corrigiu-se ele. —Só se você tivesse visto o corpo, ou pelo menos as fotos, aí a piada faria sentido. A vítima foi literalmente rasgada ao meio, algo realmente muito estranho. Então, só para finalizar, o assassino esganou o pobre coitado até a morte. Dá para acreditar nisso?

—Isso tudo é horrível. —afirmei.

—Nem me fale. E a única pista de nosso único suspeito é uma foto, tirada de um caixa eletrônico no final da rua.

O sujeito me estendeu uma folha de papel com uma fotografia impressa. Era impossível reconhecer alguém de tão longe, com uma imagem tão ruim. Nem dava para saber se era realmente um homem. Mas eu reconheceria aquele terno em qualquer lugar do mundo. Era o terno ridículo que eu usara todos os dias, durante seis meses, em meu primeiro emprego na companhia. Eu só tinha aquele e precisava inventar estratégias nojentas para amenizar os odores desagradáveis às sextas-feiras. Além disso, o negócio era largo demais e tinha aquela cor ridícula, nem marrom nem vinho, que me possibilitou pagar por ele apenas trinta por cento do preço da vitrine. Eram tempos dos quais não me orgulhava.

—Reconhece o homem? —perguntou o policial.

—Não. —menti. —Sinto muito.

—Eu também. E a vítima mais ainda.

O sujeito se levantou.

—De qualquer forma, obrigado pela atenção. —agradeceu ele, e caminhou até a saída.

Eu o acompanhei.

—Boa tarde, senhor! E desculpe o incômodo.

—Boa tarde!

Antes de o homem entrar no carro, eu ainda perguntei.

—Onde aconteceu mesmo o assassinato?

—A alguns metros do prédio onde o senhor trabalhava, debaixo de um viaduto. O senhor se recorda do lugar?

—Sim, eu me recordo.

E eu realmente lembrava muito bem daquele lugar. O prédio ficava às margens de uma avenida movimentada, em um bairro bastante difícil e bastante violento da cidade. Eu atravessava aquele viaduto todos os dias, para pegar meu ônibus. Era mais fácil que contornar a avenida e atravessar a passarela de pedestres uns oitocentos metros à frente. Aquele viaduto era um lugar de arrepiar, terrivelmente deserto. As mulheres sempre evitavam passar por ali sozinhas, mesmo durante o dia, porque o lugar era sempre escuro demais, e mesmo os homens não se sentiam muito seguros ali. Mas eu, pessoalmente, não guardava más lembranças, ou ao menos ainda não.

Resolvi visitar o lugar. De carro, a viagem levou quase uma hora. Fazia mais de dez anos que não via aquela parte da cidade. O bairro parecia ainda menos agradável agora: prédios velhos e cortiços escuros e sujos fazendo companhia a pequenos casebres de madeira. Muita sujeira se espalhava pelas ruas e não havia um único muro que não estivesse pichado. Até a pequena escola parecia em ruínas.

O bairro inteiro não passava de uma grande baixada, que nascera e crescera em volta da rodovia durante muitos anos, sem muito cuidado. As casas e a maioria dos prédios ali foram erguidos sem qualquer tipo de licença. Graças a isso, os moradores daquele lugar haviam sido praticamente abandonados pelo poder público há quase duas décadas. As coisas começavam a mudar por ali, era verdade, mas muito lentamente.

Sob a avenida, passava a estreita estrada de terra que dava acesso aos bairros vizinhos. Exatamente no fim daquela estrada, ficava o prédio cinza escuro de três andares onde trabalhei por seis meses, quando ainda era apenas um estagiário e pouco mais que um garoto. O prédio ainda tinha o mesmo nome, mas fora reformado alguns anos antes.

Desliguei meu carro e caminhei alguns passos. Estava sob o viaduto agora. O barulho dos veículos cruzando a avenida era ensurdecedor ali, mas a estrada abaixo da avenida era pura solidão, mesmo no meio da tarde, e contrastava de forma assombrosa com o movimento da rodovia logo acima. Ainda embaixo do viaduto, uma ruela estreita dava acesso a uma escada, que levava ao acostamento da avenida, logo acima. Foi exatamente naquele lugar que o corpo fora encontrado, quase dez anos antes.

Era um lugar de arrepiar, mesmo durante o dia. Havia podridão ali: uma grande lixeira de aço não era esvaziada há semanas, baratas e outros seres desprezíveis se arrastavam na escuridão, e alguém usara um canto escuro como banheiro durante um bom tempo. Desenhos de órgãos sexuais masculinos e femininos se espalhavam pelas paredes, formando um verdadeiro festival de bizarrices. Algumas daquelas coisas tinham até pernas. Os desenhistas certamente não batiam muito bem da cabeça.

E pensar que, não muitos anos antes, aquele lugar era uma rotina na minha vida. Eu deixava o escritório, às vezes tarde da noite, atravessava aquela rua, mergulhava na viela, subia as escadas e aguardava meu ônibus por horas a fio. Tempos difíceis, eu precisava admitir. Não sei se conseguiria passar por tudo aquilo outra vez.

Permaneci algum tempo nas sombras daquele lugar. Havia algo de muito errado comigo, eu sabia. Minha mente não estava bem. A imagem de um vulto caminhando em minha direção emergiu das profundezas de minhas memórias com a força de uma erupção vulcânica, por mais que eu tentasse impedir. Era alguém que eu aguardava ansiosamente, enquanto me escondia nas sombras como um animal perigoso. Depois de tudo aquilo, eu só via aquela face ensanguentada e contorcida pelo medo e pela dor. Aparentemente, era tudo verdade, eu era um assassino. Mas como era possível, como eu podia não me lembrar de algo assim? E por que eu mataria aquele garoto, fosse ele quem fosse? Não fazia o menor sentido.

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Voltei ao carro e respirei fundo. O que aquilo tudo significava? Eu estava ficando louco, era a única possibilidade. Não haveria, então, nada de errado com minha esposa, com minha vida? Era tudo coisa de minha mente? Eu já não sabia, mas precisava descobrir, precisava decidir se tinha de me afastar de meu filho ou afastá-lo da mãe. Antes, precisava correr para pegar o menino na creche antes que minha esposa o fizesse.

Chegamos à escolinha juntos, eu e minha esposa, cada um com seu carro. A mesma senhora simpática nos atendeu. Trocamos algumas palavras, e minha esposa se adiantou para apanhar nosso filho. Naquele momento a mulher certamente percebeu algo errado, algo que a assustou de verdade, mas acabou se controlando. Ainda assim, deixou minha esposa no vácuo e me entregou o menino. A forma como minha mulher a olhou depois daquilo fez meu sangue gelar.

—Vamos! —eu ainda disse, mas minha esposa ainda encarou a mulher por um longo tempo antes de partir.

—Vão em paz. —disse a senhora, com a voz visivelmente trêmula. —E tomem cuidado!

Aquela mulher sabia de algo, pude perceber. Ou será que era apenas minha mente pregando peças mais uma vez? No dia seguinte, eu daria um jeito de conversar com ela em particular. Agora, eu precisava disfarçar, e disfarçar muito bem.

 

O resto do dia correu tranquilo. Às nove horas da noite, estávamos todos na sala, assistindo televisão, ou ao menos fingindo que assistíamos. Foi quando um monstro terrível entrou pela porta da cozinha, uma aranha enorme, que logo correu para um canto escuro da sala. Eu já havia visto aranhas maiores na minha vida, mas nunca uma daquelas dentro de casa. Era uma coisa gigantesca, assustadora e muito feroz. Caminhei cuidadosamente na direção do bicho, ergui meu pé direito e estava prestes a esmagá-lo, quando minha esposa interveio.

—Não! —grunhiu ela, visivelmente irritada. —Não precisa fazer isso!

—Um monstro desses dentro de casa? Não me parece muito seguro.

—Eu cuido dela.  

Minha esposa apanhou uma toalha de louça na pia e, em um movimento muito rápido, envolveu a aranha com cuidado e a prendeu entre seus dedos. Eu não sabia desde quando minha esposa havia perdido sua aracnofobia, mas, ao longo de todos aqueles anos de casamento, não raras vezes tive de sair do trabalho às pressas para cuidar daquele tipo de assunto. Agora, porém, ali estava ela, com a coisa venenosa na mão, sem nenhum vestígio de medo. Aparentemente, sua maior preocupação era não matar o bicho, que agitava suas perninhas convulsivamente, como que prevendo seu fim.

—Elas são predadoras. São importantes para o ecossistema. Seria um desperdício…

—Tudo bem, se você diz. —eu respondi. —Apenas dê um fim nessa coisa.

—Pode deixar.

Minha esposa abriu a porta dos fundos e saiu, ainda com a aranha entre os dedos. Eu corri até a janela da cozinha e a espiei sem que ela me percebesse. O jardim estava escuro. Ainda assim, graças a luz opaca da lua, consegui enxergar minha esposa com certa clareza. Ela segurou a aranha entre os dedos e ainda observou o bicho por algum tempo, antes de devorá-lo. Um leve tremor, aparentemente mais de prazer do que de asco, tomou conta de seu corpo por alguns segundos. Depois daquilo, ela simplesmente voltou para dentro de casa como se nada tivesse acontecido e se sentou novamente para assistir televisão. Senti vontade de fugir, mas me controlei. Tratava-se de um hábito nojento, eu precisava admitir, mas não era o mesmo que acreditar que ela era um ser de outro planeta. E, como a essas alturas parece óbvio, eu sempre fui um sujeito teimoso e covarde.

Às onze, levei meu filho até o quarto, coloquei-o no berço e voltei para a sala. Permaneci mais uma noite em claro, no sofá. Os ponteiros do relógio se moveram lentamente. Eu não sentia sono ou cansaço, apenas um medo profundo, que enrijeceu meus ossos.

 

E um novo dia nasceu. Minha esposa acordou diferente naquela manhã, parecia bastante doente. Seus cabelos estavam embaraçados e quebradiços, sua pele descascara muito durante a noite e seu rosto se mostrava particularmente inchado. Pequenas manchas esverdeadas cobriam o rosto e se estendiam pelo pescoço e pelos ombros.  E minha esposa parecia mais magra do que jamais fora, como alguém que não come há meses. A mudança fora tão abrupta e repentina que me causou um sobressalto. Era como se eu estivesse olhando para outra pessoa. Não, mais que isso, era como se eu estivesse olhando para outra espécie. Minha esposa (ou fosse lá o que fosse aquilo) estava realmente mal.

—Você está bem? —perguntei. 

—Eu apenas comi alguma coisa que não me fez bem. —ela respondeu. Até sua voz estava diferente, mais metálica e mais grave. —Mas vai passar logo.

Com um cuidado exagerado, apanhei meu filho no colo e estava prestes a sair, quando minha esposa vomitou. Não, aquilo não era vômito. Ao menos, não era um vômito normal. Não havia nenhum líquido, apenas uma gosma esverdeada e pastosa repleta de coisas estranhas, que logo eu reconheci como ossos e dentes de animais. A coisa demorou para sair, demandou-lhe um grande esforço, como um gato se livrando de uma bola de pelos.

—Desculpe! —disse ela, tentando esboçar um sorriso forçado. Fissuras profundas surgiram em seu rosto, e seu cabelo agora caía em tufos, revelando chagas no couro cabeludo que pareciam bastante infeccionadas. Na verdade, o couro cabeludo inteiro parecia estar se desprendendo da cabeça. —É, acho que realmente não estou muito bem. Mas não se preocupe: eu limpo isso.

Contrariando as expectativas mais assustadoras, minha esposa simplesmente se ajoelhou e começou a lamber aquele vômito nojento com uma língua grande e vermelha. A tarefa toda demandara um bom tempo, mas ela se mostrou persistente. Quanto a mim, eu estava paralisado até os ossos, com os dois pés enterrados no chão. Senti meu estômago dando voltas. E realmente não sabia o que dizer ou o que fazer.

Minha esposa finalmente terminou a limpeza. Eu não via nem sinal da coisa verde que saíra dela, e o pedaço de assoalho por onde aquela língua grande e viscosa passara parecia até mesmo lustrado. Minha esposa então ergueu uma face extremamente abatida e disse:

—Agora, se você não se importa, eu vou descansar um pouco na toca... Perdão, no quarto.

—Tudo bem, pode ir. –respondi, entre dentes. Minha voz quase não saiu.

—Você é um bom marido!  –afirmou ela, depois de esboçar um sorriso no qual faltavam alguns dentes, então subiu as escadas até quarto.

Eu achei que a coisa não poderia piorar, mas me enganei. Meus joelhos realmente vacilaram, e eu cheguei muito perto de desmaiar. Não, o que me assustou não foi apenas a forma como a coisa que eu acreditara ser minha esposa subiu as escadas até o quarto, algo que lembrava muito uma lagartixa escalando uma parede escorregadia. Foi, principalmente, a velocidade com a qual ela atravessara todos aqueles metros que me apavorou de verdade, algo simplesmente absurdo. Eu mal consegui acompanhá-la com os olhos, cheguei a perdê-la de vista.

Algum tempo depois, ali estava eu, paralisado, com o bebê nas mãos e a expressão do mais profundo terror estampada em meu rosto. Não sabia mais o que fazer. Corri para o carro e fugi.

 

A primeira pessoa em quem pensei, o único que poderia me ajudar, morava no centro da cidade. Dirigi como um alucinado, cortei todos os atalhos que conhecia, mas acabei preso por um bom tempo naquele trânsito infernal. Um homem que teclava ao volante cortou minha frente e quase batemos. Eu buzinei. O sujeito buzinou de volta, ainda preso à tela do celular, e o transito parou mais uma vez. Por toda parte, aquela verdadeira manada de pessoas inertes, presas mais às telas de seus aparelhos do que ao mundo que as cercava, alheias a tudo o que acontecia fora daquele espaço exíguo que tanto as atraía. Senti vontade de gritar para alertá-las, mas seria em vão. Eu olhei nos olhos de meu filho. Ele retribuiu o olhar, sem deixar de mordiscar os dedos. Nós estávamos presos ali, de todas as formas possíveis. Estávamos enclausurados.

Pouco a pouco, porém, nós avançamos em meio aquele oceano de indiferença. Quase uma hora depois, chegamos ao prédio baixo de azulejos marrons. O lugar parecia ainda mais feio durante o dia. Havia uma agência dos correios no térreo, e a porta de acesso para os outros andares permanecia escancarada. Com meu filho no colo, subi três lances de escada até o último andar, encontrei o apartamento que procurava e bati desesperadamente.

Uma garota bonitinha de uns vinte anos me atendeu. Parecia curiosa. Eu espiei o interior do apartamento: o lugar parecia o mesmo de duas noites antes, mas o papel-alumínio no teto e na parede havia desaparecido. E eu agora podia ver uma mesa grande, algumas cadeiras, um computador, uma impressora profissional e alguns armários. De onde aquilo tudo havia saído?

—Pois não? —perguntou a garota.

—Eu preciso falar com o homem que mora aqui. —eu respondi, num desespero crescente. –Por favor!

Minha agitação pareceu preocupar a garota.

—Ninguém mora aqui, senhor. —afirmou ela.

—O quê? —perguntei, sem entender o que aquelas palavras significavam.

—Isto é um imóvel comercial. Ninguém mora aqui.

Eu estava ficando irritado. Era óbvio que ela estava mentindo. Minha voz subiu algumas oitavas.

—Isso é impossível! Ele mora aqui! Eu falei com ele aqui, duas noites atrás!

Um homem magro e grisalho de uns sessenta anos deu cobertura à garota. Aquele devia ser o chefe.

—Pois não, senhor? —perguntou ele.

—O homem que mora aqui. Eu preciso falar com ele.

—Ninguém mora aqui. Como a menina acabou de dizer, este é um imóvel comercial.

Eu perdi a paciência e invadi. Eles não conseguiram me deter. Era o apartamento certo, eu pude reconhecer. Vasculhei todos os cômodos, depois o banheiro, mas não encontrei nem sinal do homem misterioso da outra noite. Mais do que isso, eu via fotos do patrão e da funcionária nas paredes e sobre os armários, mas nenhuma foto do sujeito estranho. O homem da outra noite era apenas um invasor, eu percebi. Fosse quem fosse, aparentemente ninguém ali o conhecia. Minha única esperança havia desaparecido.

Eu estava ficando desesperado, ainda assim consegui me acalmar um pouco. Durante tudo aquilo, meu filho se comportou como um anjinho, apesar da gritaria.

—Dois dias atrás, mais ou menos a uma da manhã. —disse eu, ao homem e à garota. —Ele estava aqui. Eu o encontrei aqui.

—Sinto muito, senhor, mas estamos aqui há cinco anos e não abrimos à noite. —respondeu o homem. —O senhor está enganado. Somos uma administradora de prédios. Apenas isso. Esse edifício todo é um edifício comercial.

Eu suspirei. Aquele era o prédio certo, eu tinha certeza. Mas como o homem estranho daquela noite poderia ter se livrado de todos os móveis e de todos aqueles aparelhos eletrônicos? Mais que isso, como poderia ele ter coberto as paredes e o teto com aquela quantidade absurda de papel alumínio e desfeito tudo em algumas horas? Mas eu conhecia o apartamento, havia estado ali: reconhecia o revestimento feio do chão, a tinta fosca da parede. Como eu poderia reconhecer aquele lugar sem nunca ter estado ali? Era tudo confuso demais.

A garota olhou para mim, depois para o bebê. Pensei que ela ia dizer alguma coisa, mas algo a conteve.

—O que foi? —perguntei. —O que há de errado.

—O que o senhor está segurando? —perguntou ela, visivelmente assustada.

—Como assim? –perguntei, e olhei para meus próprios braços. Não havia nada neles. Meu filho havia desaparecido.

Eu saltei de susto: havia apanhado o menino do carro, tinha certeza. Como ele podia ter evaporado das minhas mãos? Era impossível. Desci as escadas como uma flecha, saltei os degraus de três em três, quase derrubei uma senhora que subia as escadas e disparei porta à fora. Depois de tudo aquilo, atravessei a rua e ainda corri uns quinhentos metros, até alcançar meu carro.

Com o veículo fechado, através das películas escuras dos vidros, eu podia jurar que não havia nada sobre a cadeirinha do bebê, no assento traseiro. Mais do que isso, eu podia jurar que até mesmo a cadeirinha havia desaparecido. Contudo, quando abri a porta, ali estava meu filho, despreocupado, mastigando os próprios dedos como de costume. Como eu pude esquecê-lo ali, daquele jeito, eu me perguntava, mas respirei aliviado por vê-lo bem.

—Desculpe, amigão! —disse eu, ofegante como um maratonista, e me acomodei ao volante.

O susto fora muito grande, eu percebia os perigos de uma mente tão agitada como a minha, mas não tinha muito tempo e precisava seguir em frente. Também precisava de alguém para me ajudar, para me orientar. Mas quem? O homem que me avisara sobre tudo aquilo, o único que realmente poderia me ajudar, havia desaparecido. Acabei lembrando da mulher na creche. Ela parecia saber de algo quando me entregou meu filho na tarde anterior. Eu precisava falar com ela.

Meia hora depois, cheguei à escolinha. A mulher me atendeu novamente. Daquela vez, a simpatia havia desaparecido. Seus olhos me encararam com indiferença. Duas professoras que cuidavam de algumas crianças no parquinho também me observaram daquele mesmo jeito.

—Por favor, eu preciso da sua ajuda. Precisamos conversar.

—Entregue-me o garoto! —respondeu a mulher, sem me dar atenção.  —E volte para a casa!

—Não, eu vou ficar com ele hoje. —respondi. —Só preciso conversar.

—Entregue-me o garoto! —repetiu a mulher. —Tudo acabará bem.

Duas mulheres que caminhavam pela calçada pararam e me encararam com olhos vazios. Um homem no estacionamento do mercado, do outro da rua, fez o mesmo. Estavam desconfiando de mim.

—Ele deve ficar conosco. —afirmou a mulher. —É o lugar dele.

Ela era um deles agora, e eu suspeitava que as professoras também.

—Ele vai ficar comigo hoje. —retruquei, e parti.

Vaguei de carro pelas ruas da cidade por algum tempo, tentando decidir para onde ir. Precisa encontrar alguém para me ajudar. Não havia mais ninguém, eu sabia. Desisti de pedir ajuda e resolvi fugir. Acelerei o máximo que pude, mas o trânsito tornou-se mais uma vez extremamente complicado. Quando parei em um semáforo, percebi que o motorista do carro ao lado me encarava daquele jeito estranho. Eles haviam me descoberto. E mais pessoas me seguiam com seus olhos mortos, por toda parte. O número só aumentava.

A sirene de um carro de polícia começou a tocar, e eu sabia que eles estavam atrás de mim. Tentei escapar do trânsito, mas acabei preso em mais um semáforo. O carro a minha frente não se moveu, mesmo quando a lâmpada verde se acendeu. Tentei contornar o veículo parado, mas o carro ao lado também me trancou. Daquela vez, foi proposital. Eu estava completamente preso agora. Alguns motoristas apressados buzinavam, mas o trânsito não se movia.

Abandonei meu carro no meio da estrada, apanhei meu filho e parti. Uma viatura policial freou com violência pouco tempo depois, quando eu já me achava a alguns metros de distância. Dois policiais saltaram e vasculharam meu carro com suas armas em punho, como se eu fosse algum lunático perigoso. Eu já estava longe quando eles alcançaram o veículo, mesmo assim precisei apressar meus passos para não ser apanhado.

Todo o resto aconteceu muito rápido. Peguei um ônibus qualquer na rodoviária e acabei na cidade vizinha. Paguei um quarto de hotel e permaneci ali por algum tempo, sem saber ao certo o que fazer. Ninguém no lugar parecia prestar qualquer atenção em mim ou no bebê. Nós estávamos a salvo por algumas horas. Ou, ao menos, era nisso que eu acreditava.

Quando dei por mim, a luz do sol já tinha morrido do lado de fora da janela. Meu filho não comia nada há sabe-se lá quanto tempo. Apanhei o cardápio do hotel e pedi o que achei mais adequado para um bebê de dez meses. Quanto a mim, eu já não sentia fome ou sono, apenas um desespero áspero, que se tornava pior a cada segundo.

A campainha do quarto tocou. Um funcionário muito jovem com o uniforme da copa do hotel serviu a canja. Eu apanhei o prato e o coloquei sobre a mesa, enquanto separava a gorjeta.

—Temos um recado para o senhor. —afirmou o rapaz, após apanhar o dinheiro.

Eu estava atônito. Recado para mim? Como alguém saberia que eu estava ali?

—Quer ouvir o recado, senhor?

—Claro, pode dizer!

—Volte para a casa! —disse uma voz de mulher.

Eu gritei de susto e caí sentado na cama. Era minha esposa. Ela estava dentro do sujeito. Ao menos, sua voz estava.

—Acabou! —concluiu ela. —Você não pode fugir de nós para sempre. Volte para casa!

—Me deixe em paz! –eu gritei.

Agarrei meu filho e fugi mais uma vez. Corria como um louco agora. Achei que aquelas coisas me seguiriam, mas estava enganado. Entrei no primeiro ônibus que vi e parti. Era um ônibus grande, verde. Eu tentava me afastar de casa o máximo que podia. Meia hora depois, entramos na rodovia. O veículo acelerou ainda mais. Eu consegui finalmente me acalmar um pouco. Estava escuro do lado de fora, e as lâmpadas do interior do ônibus estavam apagadas. Mesmo assim, pude perceber que todos os passageiros do veículo eram simplesmente pessoas comuns. As telas dos celulares brilhavam no escuro, absorvendo os olhos e a atenção de seus respectivos donos. Estavam todos presos naquela outra existência. Ninguém nos encarava com aquele olhar estranho. Estávamos seguros por algum tempo.

Viajamos por algumas horas, sem nenhum sinal de perigo, e eu já começa a acreditar que conseguiríamos escapar. Quando já estávamos a uns cinquenta quilômetros de casa, porém, uma viatura nos obrigou a parar. Três policiais entraram no ônibus e caminharam em minha direção.

—Senhor, terá de vir conosco. —afirmou um deles.

—Eu não fiz nada de errado. —respondi, com uma birra de criança.

—Ainda assim, terá de vir conosco.

Os passageiros do ônibus finalmente prestaram alguma atenção em mim, e a sensação foi incômoda. Fui coberto por olhares de desconfiança, medo e pena. Com muita relutância, ergui-me do banco e caminhei para fora do ônibus. Pensei em fugir, mas havia mais policiais ali, uma pequena legião. Eu e meu filho fomos separados. Uma policial aparentemente muito cuidadosa ficou com o menino. Eu relutei muito antes de entregá-lo, mas percebi que ela não era um deles e fiquei mais tranquilo.

—Ele vai ficar bem, senhor. —disse ela, com afeto.

Eu obedeci. Abandonei meu filho com um aperto no coração e fui obrigado a entrar em uma das viaturas, na companhia de dois policiais que tinham a missão de me conduzir novamente para casa, talvez para a cadeia.

A viagem de volta demorou algum tempo. Nós passamos por muitos carros, por muitas ruas: postes e árvores passavam diante de meus olhos sem que eu realmente os visse.

—Vocês ao menos sabem o que está acontecendo? —perguntei, aos policiais na viatura, assim que entramos nos limites da cidade. Não conseguia mais me conter.

—Sua esposa está preocupada. —respondeu o policial no banco do passageiro. —Ela acha que você não está muito bem mentalmente. Só isso.

O outro policial permanecia quieto, concentrado na estrada, mas quebrou o silêncio logo depois.

—E por que não nos diz exatamente o que está acontecendo? —perguntou ele.

—Alienígenas. —respondi. –Minha esposa foi substituída por um maldito alienígena. Nosso filho corre perigo.

—Alienígenas? —perguntou o policial no banco do passageiro, depois de uma gargalhada seca. —Cabeças grandes, olhos negros, viajando em discos voadores? Você realmente não bate muito bem!

Novamente houve um instante de silêncio, então o policial que dirigia a viatura comentou:

—Na verdade, não viajamos em discos voadores.

—O quê? —perguntou o outro.

—Viagens interestelares demandam muita energia. As distâncias são muito grandes, e naves são pesadas demais. Existem formas mais rápidas e mais seguras de viajar no espaço. O problema é que não podemos carregar nada conosco, nada além de nossos próprios corpos.

—De que diabos você está falando, homem?

Sem aviso prévio, o policial que dirigia a viatura sacou seu revólver e estourou a cabeça do companheiro. E não era preciso muita criatividade para saber quem seria o próximo. Eu estava morto, imaginei, mas o sujeito não parecia muito preocupado em me matar.

Seguimos viagem por alguns quilômetros, em silêncio. Quando um carro quase cortou nossa frente, aproveitei a distração, apanhei a pistola do policial morto e a apertei contra a nuca de seu falso colega. O sujeito não pareceu nem um pouco preocupado com a arma.

—Pare o carro! —esbravejei.

Ele obedeceu.

—Onde está meu filho?

—Exatamente onde deveria estar: em casa, com a mãe.

—Ela não é a mãe dele! —gritei.

—Sim, ela é. —retrucou o policial. —Você, mais do que ninguém, deveria saber disso

Eu estava perdendo a paciência.

—Não vou discutir com você, seja lá o que você for.

O falso policial realmente não parecia preocupado comigo, como se eu não pudesse fazer-lhe qualquer mal, como se a pistola em minha mão fosse feita de plástico.

—Como vou saber que você não vai avisar os outros policiais? —perguntei. —Que não vai me seguir?

—Minha missão não era seguir você, era libertar você, e você está livre. Minha missão terminou.

Eu acreditei nele, por alguma razão. Estava prestes a partir, quando o policial me estendeu uma arma.

—Pegue isso! —disse ele. —Você sabe o que fazer com ela.

Eu olhei para minhas mãos, depois para o falso policial dentro da viatura, depois novamente para minhas mãos. Tinha certeza absoluta de que segurava uma pistola poucos segundos antes, mas a coisa havia evaporado. O corpo do policial morto também não estava mais no assento do passageiro, e até o sangue no interior do carro havia desaparecido. Na verdade, eu agora percebia, a farda do policial também se fora, e mesmo a viatura agora não passava de um sedã verde horroroso e extremamente comum. Desisti de tentar entender, apanhei a pistola que o homem oferecia e parti.

Caminhei lentamente pelas ruas da cidade, me preparando para o que iria enfrentar. A quantidade de pessoas que me observavam, que me seguiam com aquele olhar característico, agora era absurda. Quando cheguei a minha rua, deparei-me com uma verdadeira legião. Estavam todos de pé, diante de minha casa, me aguardando: centenas e centenas de espectros assustadores, das mais variadas etnias, idades e tipos físicos. Aparentemente, não queriam me ferir. Pelo menos, ainda não. Passei por eles como se não existissem, caminhei até a porta de minha casa, respirei fundo e entrei.

 

O bairro todo estava sem energia, eu agora percebia, por isso a casa se achava mergulhada em trevas. Com exceção das lâmpadas de emergência, nenhuma luz funcionava. Mesmo assim, não demorei para encontrar meu filho. Ele estava na sala, sobre o carpete. Brincava, distraído, com uma bugiganga qualquer. Eu suspirei aliviado e o apanhei. Apertei-o com força, instintivamente, para evitar que algo o arrancasse de mim novamente.

O primeiro problema estava resolvido, mas ainda faltava o pior. As coisas do lado de fora da casa certamente não esperavam que saíssemos dali vivos. E a coisa dentro de casa ainda estava escondida em algum lugar.

—Por que todo esse trabalho? —perguntou minha falsa esposa.

Ali estava ela, no topo da escadaria. Apontei a arma e perguntei.

—E o que eu deveria fazer: desistir, abandoná-lo?

—E não foi exatamente isso que você fez até aqui, durante todos esses anos? Você os abandonou.

—Cale-se! –eu gritei.

A coisa que eu pensara ser minha esposa se moveu. Tentei acompanhá-la, mas era impossível. Eu a perdi de vista por um momento e, quando dei por mim, ela já estava no primeiro andar, no canto da sala. Demorei um bom tempo para localizá-la. Aquela coisa era realmente muito rápida.

—Pode imaginar como é sobreviver em um lugar onde a vida é tão escassa que se dilui antes mesmo de nascer? –perguntou ela. –Onde só o que existe é morte? Onde o alimento é tão raro que você não pode se dar ao luxo de matá-lo antes de sorvê-lo? Vocês vivem em um paraíso aqui. Ninguém tem o direito de ter um lugar como este só para si.

A coisa se aproximou de mim. Já não lembrava em nada minha esposa. Superficialmente, talvez. Ela havia se refeito em grande parte: o cabelo e a pele retornaram ao normal, o mesmo para o corpo. Mas agora eu podia vê-la como realmente era, podia enxergar a criatura monstruosa que se movia por baixo daquela casca. Era uma coisa horrível, cinza, pegajosa, gigantesca. Os membros eram fortes e compridos, e os olhos não passavam de covas profundas e escuras.

Onde estaria minha verdadeira esposa, eu me perguntava. Lembrei-me do dia de nosso casamento: a mulher mais linda que eu havia conhecido em toda a minha vida, a mulher que eu escolhi para amar, caminhando em minha direção. Meu coração batia muito rápido. O casamento, em si, fora uma cerimônia simples, só para os amigos. Amigos que eu nem sabia mais onde estavam. Nós não tínhamos muito dinheiro na época, tivemos de improvisar, passamos por muitas e muitas dificuldades, mas éramos felizes. Nossos sorrisos eram sinceros. O que havia acontecido comigo? Onde estava toda aquela felicidade, todo aquele amor?

—Por que não acabamos logo com isso? —perguntou a coisa que substituíra minha esposa, e deu mais um passo.

—Parada! —ordenei, com a arma em punho, protegendo o bebê. —Afaste-se dele!

—Você está confuso. Devolva meu filho!

—Ele não é seu filho! —berrei, com a força que ainda havia em meus pulmões.

—Sim, ele é meu filho. —respondeu a coisa, bastante convicta.

—Não tente me enganar, aberração! Eu vi o que você é. Você é nojenta! Eu prefiro morrer a entregá-lo a você! Não vai tocar nele! Não vai devorá-lo como fez com aqueles pobres animais!

—Devorá-lo? —perguntou a coisa, surpresa. —É isso que acha que estamos fazendo aqui?

—Não tente me enganar! —esbravejei. —É a verdade.

—Ah, criaturinha ingênua! Não estamos aqui para devorá-los, estamos aqui para nos multiplicar.

Eu estava realmente confuso agora.

—Como assim? —perguntei, tentando compreender. Minha cabeça fervia agora. Comecei a ver imagens que não estavam realmente em minha mente, lembranças que não eram realmente minhas, como se algo ou alguém tentasse enfiá-las em minha cabeça. Em meu devaneio, vi um menino loiro, como eu, de uns dez anos, chorando. “Pai!”, gritava ele.

Eu voltei a mim. Minha falsa esposa deu mais um passo na escuridão, encarou meu rosto com curiosidade e respondeu minha pergunta com outra:

—Há quanto tempo estou aqui?

Eu não estava pronto para tamanha honestidade repentina.

—O quê?

—Eu matei sua esposa com minhas próprias mãos, roubei suas lembranças, tudo que ela era, e a substituí... Há quanto tempo eu estou aqui?

—Não sei. Semanas...

A coisa sorriu com dentes pontiagudos.

—Meses... —eu me corrigi, e aquele sorriso diabólico ficou mais largo.

—Eu não menti quando disse que sou a mãe dele. —disse a coisa nojenta, apontando para o menino.

—Eu realmente sou. Mas você não é o pai… Eu estou aqui, nesta casa, há dez anos.

—O quê? —perguntei, tentando disfarçar o medo que aquela informação me causara.

Repentinamente, fui tomado por um tremor convulsivo, do mais absoluto horror. O bebê em meus braços agora me enchia de repulsa. Não, aquilo também não era um bebê, era outra coisa, algo diferente, macabro. Eu o observei nos olhos por um momento. Ele retribui meu olhar. Tinha uma expressão bastante adulta agora, com a de um homem feito.

—É verdade! —ele disse, com uma voz mais grave que a minha.

Eu o soltei aos gritos e me afastei o máximo que pude instintivamente. O menino se esticou: seus ossos estalaram. Ele se ergueu, ao lado da mãe. Tinham quase o mesmo tamanho agora.

—Sabia que ela estava grávida quando a matei? —perguntou a coisa que eu pensara ser minha esposa. –Sua fêmea… Dois meses. Seu filho teria…

—Quase dez anos agora. —eu afirmei, entre dentes.

—Exato!

—Não podem fazer isso comigo. –sussurrei –Conosco!

—E quem disse que não? —perguntou a assassina.

Eu levantei a arma. Meus dedos roçavam sobre o gatilho. E novamente um lampejo em minha mente. A sala estava clara agora. O menino loiro chorava. Era bonito demais, como a mãe. Minha esposa o abraçava, visivelmente assustada. “Pai!”, gritava o menino. “David…”, sussurrava minha esposa, “O que está acontecendo?... Quem são aquelas pessoas lá fora?... David, o que você está fazendo?...”.

—Fiquem quietos! —eu gritei. Estava de volta à sala escura. Minha falsa esposa gargalhou. Sua voz soava muito aguda e sibilante.

—Nada do que você possa fazer pode nos fazer mal. —sussurrou ela. —Nada... Nós vencemos!

—É possível. —respondi. –Mas não custa tentar.

Um clarão em minha mente… “Não!”, gritou minha esposa, apavorada. O menino chorava mais alto. Meu dedo vacilou sobre o gatilho, mas eu me mantive firme. Eles não me enganariam mais. Três tiros para cada um, e tudo estava acabado. As duas criaturas tombaram na escuridão. O revólver escorregou entre meus dedos e caiu. Eu tremi e desabei no sofá. Suava muito agora.

 

Esperei ali, sem força para me erguer novamente. Achei que as coisas do lado de fora invadiriam a casa para me matar, mas estava enganado. Não percebi quando a eletricidade havia voltado, mas eu agora podia vê-los com clareza: a mãe e o menino, mortos sobre o tapete felpudo da sala. A face da mulher era de sofrimento e surpresa. E havia muito sangue. Aquelas criaturas fingiam muito bem, mesmo depois de mortas.

Depois de alguns minutos, ouvi o barulho de sirenes ao longe: uma ambulância e três viaturas policiais, no mínimo. A porta de entrada foi arrombada, e homens com fardas escuras e armas pesadas me cercaram em segundos. Era o fim para mim, mas eu já não importava.

—Parado! —gritou um dos policias.

—E para onde eu iria? —perguntei, com lágrimas nos olhos. O sujeito não disse mais nada.

Fui agarrado por braços fortes, algemado e conduzido até o banco de trás de uma viatura. A legião de invasores que cercava minha casa minutos antes se dissolvera por completo. Agora, havia por ali apenas meia dúzia de curiosos, que me encaravam com olhos assustados mas não deixavam de me filmar com seus celulares idiotas: vizinhos na maioria, mas também alguns conhecidos.

Já dentro da viatura, ouvi um repórter falando ao telefone, provavelmente com seu superior.

—Sim, senhor… Sim, uma mulher jovem e um menino de uns dez anos… Não sei, senhor. Aparentemente, o homem enlouqueceu…É verdade, vai dar uma boa história…. Não, não acho que ele está em condições de falar agora… Tudo bem, eu dou um jeito de postar agora mesmo…

Um pouco à frente, um sujeito nanico e meio gordinho discutia com um policial que não lhe dava a menor atenção.

—Não, você não está atendendo. —grunhiu o homenzinho. Era meu chefe. —Temos uma reunião amanhã, com um cliente importante, e preciso dele. Eu preciso dele, entendeu?

—Tudo bem. —retrucou o policial, enquanto rabiscava algo no relatório. –Podemos providenciar uma teleconferência da cadeia.

—Sério, pode fazer isso por mim? —perguntou meu chefe, com um brilho de esperança nos olhos.

Não, não era piada: meu chefe era egoísta demais para discernir qualquer forma de sarcasmo quando era usado contra ele. O policial o encarou sem a menor paciência e partiu. Meu chefe ainda me analisou atentamente por um longo tempo, com um sorriso pálido nos lábios, antes de embarcar em sua Mercedes. Sua esposa estava no banco de trás, com a filhinha de um ano no colo, e me observou com aqueles olhos vazios. Ela era um deles, eu percebi, e a criança corria muito perigo.

—Mas que grande merda você fez aqui! —grunhiu ele, desanimado, antes de partir. —Vamos perder o maldito cliente.

Só então me dei conta de que meu chefe era idêntico, ou quase idêntico, ao homem no qual eu trombara no mercado três dias antes. Poderiam, facilmente, ser a mesma pessoa. Na verdade, agora eu tinha certeza, eram a mesma pessoa, embora o homem daquela noite fosse muito mais magro e muito mais pálido. Enfim, tudo estava se encaixando.

O tempo passou, e a roda de curiosos em frente a minha casa começava a se diluir. A escuridão da noite ganhava força. Permaneci horas ali, plantado. Não aguentava mais a espera, mas a viatura policial finalmente partiu.

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